domingo, 29 de novembro de 2015

Das doces crises

Nós estamos em uma crise de representação. Mas não de representação política: a crise é de representação SIMBÓLICA. A "patrulha do politicamente correto" se transmutou em "patrulha do cognitivamente correto".

Como linguista, eu não tenho escolha a não ser falar da língua: a língua humana tem um aspecto "selvagem". Como dizia Lacan, ela não se domestica. Mas, de fato, há um engano aqui: o mundo selvagem tem regras. A linguagem, em seu campo de ação política, é sistematicamente sabotada. Como o homem, ela se corrompe facilmente. Neste momento, toda uma complexidade de desdobramentos da fala tem dado lugar a uma leitura rasa e superficial, unívoca e homogênea. A fala se judicializou.

O leque de pressupostos e o tempo de análise estão reduzidos. Se alguém pergunta "Que horas são?", pode estar querendo saber tudo, menos o horário. Se alguém diz "Está frio", a última coisa que esta pessoa quererá ser é um informante do tempo. E, pasmem: ele poderá inclusive ser isto. Pelo simples fato de que sempre há contextos a serem considerados. Como provoca a linguista francesa Jacqueline Authier-Revuz: "a língua não é idêntica a si mesma".

Se um âncora de TV ou um delegado da PF tentar ler Foucault, Dostoiévski ou uma transcrição do mais banal diálogo do cotidiano, terão ambos sérias dificuldades. Há, em cada dicção, em cada tecido verbal, uma multiplicidade de vozes. E o pré-requisito básico para essa competência não é adquirido em nenhum curso superior ou especialização: é a vivência, literária e cognitiva.

O mundo da informação parece ter fetiche por esse princípio: o da mediocridade. Leu-se mal o filme "Tropa de Elite", lê-se mal o atentado em Paris, lê-se mal o crime ambiental de Minas, lê-se mal uma singela hashtag anti-machismo. De uma certa maneira, a interpretação se tornou autoritária: se não interpreto "assim", sou alienado. Simplificando, é falta de prática para o debate. À lupa, "é a economia, estúpido!"

Novidade? Creio que não. A diferença é que podemos monitorar isso mais de perto agora, com a tecnologia. Assistimos, finalmente, às pressões intensas por modos de interpretação. Elas se movimentam com desenvoltura diante de nossos olhos (o mote da Globonews é: a gente dá a notícia e "também" interpreta).

Degradação? Também não. Parece mais um hiato. Um hiato cognitivo. Não surpreende que o teatro, a música e o cinema estejam completamente despolitizados. O humor, por outro lado, está over, atolado em política e, por isso mesmo, "sem graça". Logo o humor, que é um regime diferente do sentido.

O que mais impressiona, no entanto, é ver que ninguém está imune a esse "efeito-manada", que te força a ler o mundo de um jeito e não de outro. Do mais singelo usuário de rede ao mais sofisticado articulista sênior, a carência por aceitação é a mesma. Ser lúcido, a essa altura do campeonato, é quase uma impossibilidade (a "lucidez" será rechaçada ou transformada em "onda").

Dá trabalho interpretar. É mais cômodo e rápido comprar feito. Mas o sedentarismo cognitivo pode levar a doenças sérias, como o mau humor e a absoluta falta de repertório (verificada em cartazes de manifestantes de ocasião, indignados com tudo).

Minha inocência habitual pede vênia para fechar a reflexão assim: desse "caldo" deve sair algo novo. Quanto mais movimento, mais liberdade (a palavra à solta em meios virtuais). E problemas novos. O fracasso das interpretações simplistas, mais cedo ou mais tarde, dará o ar da graça. Para isso existe a história. Mas, convenhamos: haja paciência!