Como é que surge a ideia para um estudo cujo sentido principal é
explicar algo aparentemente tão espontâneo como uma piada?
As piadas impõem problemas
bastante complexos para uma abordagem lingüistica.
No universo jocoso, os
recursos técnicos de expressão de uma língua são utilizados de maneira
especial, pouco óbvia. Ficam como que expostos. Nesse sentido, estudar piadas é
como enxergar uma língua de outra maneira, observá-la de outro ângulo. É um
universo em que a gramática joga com possibilidades simultâneas, em que a
polissemia é um elemento constante, em que os contratos de conversação são
quebrados, em que palavras são criadas e sons reordenados. Numa piada, a língua
mostra suas “garras” sua natureza “selvagem”. É mais ou menos isso que Freud
percebeu há exatos 100 anos no livro “Os chistes e sua relação com o
inconsciente”, quando observou como o funcionamento do inconsciente e os mecanismos
lingüísticos das piadas eram semelhantes. Nos dois campos há presença maciça do
paradoxo e da contradição. O caso é que, como nos sonhos, as contradições
jocosas são passíveis de interpretação, mas de uma interpretação imediata, no
estalo, já que nas piadas há repressão da racionalidade. Para a lingüística,
portanto, explorar alguns aspectos formais na estrutura de uma piada permite
formular hipóteses sobre como uma língua funciona, como um jogo de contrastes
de sentido pode ser construído e interpretado. A idéia para o estudo surge
dessa possibilidade.
Em algum momento a Academia considerou que
seu trabalho era uma grande gozação?
Não, em nenhum momento.
Atualmente, os estudos sobre piadas são numerosos e até gozam – no bom sentido
– de um certo prestígio. O russo Victor Raskin, radicado nos EUA, é um
especialista mundialmente reconhecido. O italiano Salvatore Attardo, atual
editor da revista americana “Humor”, é um estudioso erudito, com publicações
importantes. No Brasil, o lingüista Sírio Possenti é pioneiro no assunto e se
dedica ao tema há mais de 15 anos, com publicações e conferências. Quando o
assunto é o ‘humor’ propriamente dito as referências se estendem para a
filosofia, sociologia, história e antropologia. Quentin Skinner, Peter Burke,
Jacques Le Goff, George Minois são nomes recorrentes na área. Há, portanto, uma
atmosfera acadêmica relativamente estabelecida. Claro que há muitas histórias
engraçadas no entorno do meu trabalho, na relação com os amigos e na redação de
algumas reflexões não-acadêmicas.
No seu trabalho, você cita exemplos de
piadas com gaúchos, mineiros, paulistas e cariocas. Os baianos seriam o quinto
lugar do ranking do anedotário?
Tirando as
piadas de gaúcho, bastante numerosas, eu diria que as piadas de baianos estão
no mesmo patamar estatístico que as de mineiros, paulistas e cariocas, e isso
num breve levantamento pela internet, fonte privilegiada para o meu trabalho.
Digo isso porque pode haver “focos” geográficos em que esses números tomem
outras proporções, como regiões fronteiriças dos estados em questão, e aí num
levantamento baseado nas tradições orais ou em publicações regionais. Nesse
sentido, um contraste de culturas, uma competição cultural mais acirrada e
localizada é um “criadouro” especial para as piadas que põem em cena os atores
dessa competição. De qualquer forma, há uma certa integridade na pesquisa pela
internet, porque todo o conteúdo que atende ao gênero ‘piada de x ou y’ será
disponibilizado pelos buscadores. No caso do meu trabalho, a escolha daqueles
quatro personagens foi de ordem técnica: são atores sociais que interagem mais
fortemente, cuja disputa cultural é mais aguda. A meu ver, o personagem baiano
nas piadas tem outra dimensão, figura como protagonista num imaginário social
em que a disputa direta é menos evidente, mais sutil eu diria. É como se fosse
o personagem baiano jogando com sua suposta preguiça. É, certamente, um tema
complexo.
Como é o perfil estabelecido para esses
quatro grupos, a partir do que você estudou sobre as piadas?
O gaúcho é o falso machão, aquele
que simula uma masculinidade que “não existe”. O mineiro é o desconversador,
caipira esperto que se dá bem. O carioca é o bom de lábia, folgado,
aproveitador. O paulista é o chato, trabalhador, esnobe. A identidade desses traços
é histórica, está na literatura, no imaginário político, no arquivo
jornalístico etc. Nas piadas são criadas situações para que esses estereótipos
possam ser contrastados, num efeito de interdependência. Há contudo
irregularidades impostas pelo veículo ‘piada’ e o traço da “cornice”, por
exemplo, pode ser comum a todos eles.
O que dá sentido a uma piada e torna ela
universal é o fato de que alguns elementos têm que ser conhecidos por um grande
número de pessoas. É daí que surge a necessidade de explorar estereótipos?
Uma das características formais
mais importantes das piadas é que elas são textos curtos. É preciso, portanto,
haver um certo acordo com relação aos pressupostos (aos preconceitos, eu diria)
em jogo. É em função disso que algumas piadas podem não fazer sentido para
certos ouvintes. Haveria, ali, algum tipo de discrepância de ordem cultural.
Nesse sentido, a resposta para sua pergunta é sim, o estereótipo é um elemento
universal, definidor do gênero, um recurso técnico de alta eficiência.
Você foi até Freud para enriquecer sua
análise. Qual a contribuição da psicanálise para entender os mecanismos do riso
fácil e imediato?
Freud funda a psicanálise numa
reflexão sobre o sonho, e nessa reflexão o chiste – ou a piada – tem
importância decisiva. Trata-se da materialização em língua de alguns processos
inconscientes, como os fenômenos da condensação e do deslocamento. Freud
demonstra – com análises precisas – que certas piadas fazem “mudar o curso do
pensamento”, como que “deslocando” as idéias de lugar. Demonstra como uma
“fusão lexical” pode levar ao riso, num efeito de condensação. Neste último
caso, para efeito de exemplo, a piada é mais ou menos assim: “um pobretão fala
de um aristocrata que o recebeu bem: – ele me tratou muito familionariamente!”.
Jacques Lacan é o leitor privilegiado de Freud que estabelece a importância
teórica do livro sobre os chistes para a psicanálise. Não é à toa que sua
leitura é fortemente afetada pela lingüística. Então, eu diria que a
psicanálise contribui decisivamente para o estudo de piadas – e do riso, num
certo sentido – com uma teoria do inconsciente bem estabelecida e bastante
convincente, mas também que o estudo lingüístico das piadas contribui, não só
para o entendimento da psicanálise, mas também para manter sua teoricidade em
movimento, para legitimá-la.
Você acha que as piadas regionalistas
surgem para superar complexos de inferioridade em relação a um ou outro perfil
mais nítido no vizinho de estado?
Prefiro ver a questão com a lente
invertida: elas surgem para rebaixar os traços positivos do diferente numa
relação de disputa. Como você bem disse, o estereótipo é um recurso recorrente
nas piadas para uma necessidade de conhecimento partilhado, de um contrato
tácito com relação a valores culturais, mesmo que em oposição. Como se constrói
um estereótipo? Com o mecanismo do simulacro. Na teoria do discurso, simulacro
é a identidade que o outro confere ao mesmo, isto é, como “sou” visto pelos
outros. Assim, se a identidade que o gaúcho dá a si próprio é de homem viril e
destemido, a identidade que seus “inimigos” lhe conferem é de efeminado, o que,
nesse contexto específico, tem conotação negativa. Serão traços em oposição,
ironicamente interdependentes, isto é, quando um gaúcho de piada se diz macho,
ele ao mesmo tempo diz “não sou gay”, mecanismo que o programa Casseta e
Planeta explora. Isso gera um discurso jocoso, feito de contrastes ou
contradições pouco enunciáveis em contextos “sérios”, a não ser como elemento
expressivo, de ironia, como fez de maneira precisa o sociólogo Luiz Mott ao
dizer que “é preciso ser muito macho para ser gay no Brasil”. Isso ajuda a
entender porque as piadas de gaúchos não são piadas de homossexuais
propriamente, mas de heterossexuais. O que está em jogo ali é a identidade – caricata
– do homem heterossexual. Então, eu diria que a as piadas emergem mais como uma
relação de afronta do que de superação, uma afronta certamente ambígua, com
“trejeitos” amistosos, de brincadeira.
Internacionalmente, como ocorre a concepção
das piadas? Quais os mais recorrentes recursos de humor no mundo?
É um fenômeno discursivo mais ou
menos parecido com os provérbios, surgem de certas zonas “densas” de sentido.
Assim como “casa de ferreiro, espeto de pau” pode servir para significar uma
porção de coisas (notadamente associadas a uma atitude preventiva, de cunho
educador), uma piada como “um cego pergunta ao manco: como você anda? E o manco
responde: como você vê” põe em questão o tema universal dos defeitos físicos,
funciona com um certo aforisma moralista, metáfora potencial para qualquer
assunto. Lembremos como a cultura judaica construiu boa parte de seus valores
com piadas (a maioria em iídiche). Também é bom lembrar que as piadas estão num
registro enunciativo que torna seus supostos objetivos ambíguos: não se pode
saber o grau de fiança ideológica de um piadista. Ele joga até com isso. Mas,
voltando à sua pergunta: piadas são criadas por sujeitos, evidentemente. Elas
apenas rejeitam a autoria e isso é conseqüência de uma certa organização histórica
dos sujeitos e suas produções textuais, isto é, um romance nem sempre foi
assinado. Isso também não impede que algumas piadas sejam “assinadas” por
humoristas profissionais, o que seria outro fenômeno discursivo, obviamente.
Quanto aos recursos mais recorrentes nas piadas, pela minha experiência e
leitura, diria que são as chamadas piadas de duplo sentido (relativo a uma
palavra específica) e os trocadilhos. Acho que o recurso de humor mais
recorrente, pensando na cultura ocidental conhecida, dos clássicos a Stephen
King, é o efeito de distanciamento intencional entre o dizer e o dito, o que,
grosso modo, pode ser chamado de ironia.
Como se explica, por exemplo, a obsessão do
brasileiro em reafirmar uma burrice lusitana?
Esse é o tema de meu atual doutorado.
E é bastante complexo. Não sei se se trata de uma obsessão. Acho que é mais uma
tradição. Nas piadas, a “burrice” é um tema universal, de longe o mais popular.
Isso se explica porque a “burrice” consiste em discrepâncias de interpretações,
o tema por excelência das piadas em sua estrutura externa, isto é, na relação
piadista / ouvinte. De maneira geral, a piada de “burro” é uma espécie de piada
dentro da outra, uma pegadinha, bem sucedida, e depois narrada. Para os
franceses, os burros são os belgas, para os portugueses, os alentejanos. No
caso das piadas de português no Brasil, há o histórico complexo da gênese. Para
a famosa pergunta “de onde viemos” diga-se: dos portugueses. Isso cria uma
crise de identidade que se materializa numa afronta jocosa verbal. As piadas de
português são como um espelho para o brasileiro. O problema se amplia com a
questão da língua. Já não falamos a mesma língua e o conceito de língua nessa
discussão torna-se cada vez mais movediço. Isso é deveras interessante, para usar
um português castiço. Há o problema de matriz e filial: quem se distancia de
quem: o português europeu do brasileiro ou o português brasileiro do europeu?
Quem tem mais poder (porque, no fundo, a questão é essa)? Há, ainda, uma
política real de língua baseada em homogeneização ortográfica, há inúmeros
discursos etnocêntricos de ambas as partes. É nesse cenário que as piadas de
português podem ser, hoje, interpretadas. O léxico coincide na forma, mas
difere no sentido de maneira especial, singular. As piadas se alimentam dessa
fonte, procuram o equívoco, um equivoco calculado, propício. Essa relação
interlínguas é que possibilita uma quantidade incomum de piadas de português,
que não são apenas piadas do personagem português, mas do português enquanto língua.
Tamanho material discursivo e cultural é, digamos, proporcional à emergência
dessas piadas.
Você considera que o humor tem que ser
politicamente incorreto, ou, perguntando de outra forma, que a piada com
obrigação de ser politicamente correta, não passa de uma narrativa estéril?
Num certo ponto de seu trabalho,
Freud diz que não há chistes inocentes, que, a rigor, todos eles desvelam uma
certa malícia. A princípio penso que há piadas de ambas as naturezas, que na
verdade, haveria uma gradação do politicamente mais incorreto ao politicamente
mais correto. Isso é um tanto perceptível nos humoristas. Há aqueles que
“vivem” do politicamente incorreto, como o programa televisivo Pânico e os que
têm um repertório de piadas quase lírico, de muita classe, como o brilhante
Juca Chaves: por que todo judeu tem que ir ao muro das lamentações antes de
casar? Para aprender a falar com as paredes. Há uma certa “incorreção política”
aqui, claro, mas é sutil, delicada, não agride. Agora, se pensar numa piada
como a do Nélson Rodrigues, para quem “a pior forma de solidão é a companhia de
um paulista”, a coisa já muda um pouco de figura, sem bem que é uma piada
igualmente irresistível.
Depois de fazer um estudo
dessa profundidade, você já se considera apto a criar suas próprias piadas?
Quais são as características necessárias para isso, além, é claro, da
imprescindível criatividade?
Eu cheguei a sonhar com piadas, o
que quase arruinou a carreira do meu psicanalista. Sonhava com piadas mal
acabadas, com defeitos estruturais. Neurose de grau considerável. Pensei em
relatar em algum ensaio, mas acho que cabe melhor em crônicas ou romance.
Quanto a criar piadas, fiz sim, algumas. O processo é mais ou menos assim:
garimpa-se uma palavra ou enunciado que tenha alguma ambigüidade latente (ou
possível) e constrói-se algum tipo de estrutura narrativa para que ambos os
sentidos possam emergir sobrepostos. Simples, não? Os roteiristas de seriados
como Friends, Will and Grace são especialistas nessas construções, para não
pensar em Woody Allen, Grouxo Marx e o Barão de Itararé. Quanto a
características necessárias, diria que há uma especial: seja neurótico.
Qual a piada que sempre que você está em
uma nova roda de conhecidos em uma festa, você conta como cartão de visitas
seu?
Em meados de 1980 um jornalista
precisou fazer uma matéria sobre um sujeito que tinha a fama de ter a memória
mais prodigiosa jamais relatada. Era um índio, cuja aldeia ficava no coração do
Pará. O jornalista tomou a estrada, pegou febre amarela, andou 3 dias e 3
noites e finalmente chegou à aldeia. Havia uma fila enorme diante do tal índio,
que era pagé. Três horas na fila, o jornalista se depara com o índio e
pergunta: o que o senhor comeu no dia 28 de abril de 1972? O índio respondeu:
ovos. Perplexo diante de tal resposta lacônica, o jornalista foi embora e
frustrado nem produziu a matéria. Muitos anos depois, o jornalista está em Nova
Iorque, caminhando pelo Central Park, quando vê, recostado numa árvore, o tal
índio. Se aproxima, incrédulo e exclama: mas como? E o índio: fritos.
Você também estudou a obra de Chico
Buarque. Que tipo de conclusão obteve com as letras?
Um aspecto
interessante é que Chico utiliza alguns mecanismos típicos do registro
humorístico, como trocadilhos e condensações, para alcançar efeitos de puro
lirismo, como em Joana Francesa, por exemplo. Chico tem uma relação forte com a
palavra, com a forma, e isso possibilita uma aproximação interessante da
lingüística em sua obra. Há um jogo enunciativo bastante sofisticado em suas
canções, como o notório recurso ao eu lírico feminino. Como lingüista filiado à
teoria do discurso, os aspectos históricos também têm valor especial para mim.
Nesse sentido, a relação de Chico com a censura fornecia chaves interpretativas
de forte conotação política. Suas metáforas construíram uma ligação passional
com a realidade do país, paixões mais carnais que ideológicas e, por isso, mais
poéticas que panfletárias. Chico é elegância encarnada. Só nos resta ouvir suas
músicas.
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