quinta-feira, 9 de abril de 2020

Chuto, logo existo


"Sujeitos descobrem a fissura do átomo, a antimatéria, a origem do universo, mas tropeçam em identificar uma partícula gramatical elíptica, porque aquilo parece coisa do demônio."
O coquetel 'vírus-internet-psicologia humana-déficit educacional-estadofobia' deixa realmente um desafio sem precedentes para seres humanos que um dia entenderam o que é viver coletivamente.
Neste exato momento, o que circula de maneira massiva no WhatsApp são receitas caseiras e panaceias que solucionam em definitivo a pandemia que já infectou 1,5 milhão de pessoas. É só querer.
São tons, dicções e mensagens idênticos aos utilizados por Bolsonaro - daí sua resiliência política surpreendente em tempos de coronavírus.
Gargarejos com sal que mudam o pH da saliva a matam o vírus. Vitamina D. Ação caseira idêntica a cloroquina. Cenoura. Sol. Babosa.
Até médicos formados entram nessa ciranda salvacionista. Roberto Kalil que o diga: ele tomou cloroquina contra a recomendação de seu médico e deu uma entrevista afirmando que a cloroquina "funciona".

O médico de Kalil, Carlos Carvalho (do Sírio Libanês), disse que usar cloroquina e se curar da infecção de coronavírus é como tomar novalgina e dizer que a novalgina curou a infecção. Foi cruel. Kalil foi reduzido a um Caio Copolla.
Nós estamos lidando com um vírus e com as limitações do cérebro humano, que em sua interface social depende de práticas discursivas para municiar os indivíduos de identidade.
É preciso ter opinião para se existir - um passo além do axioma cartesiano 'penso, logo existo'.
No Brasil, dadas as históricas negligências do Estado, vamos mais longe: 'chuto, logo existo'.
É uma tsunami de chutes, palpites, apostas, previsões e vaticínios que chegam a corar qualquer punguista.
Mas não é só isso.
São opiniões definitivas, sem margem para resposta. Se você discordar, você é um idiota que deve ser eliminado sob a ira de deus.
Aliás, quando deus entra nessas proposições de cura, a gente percebe o nível de miséria cognitiva a que estamos sujeitos. Não à toa, Richard Dawkins classificou deus como genocida, vingativo, feminicida e pestilento.
Ele se baseou no novo e velho testamento e em processos objetivos e técnicos de interpretação de texto. Deus genocida é literal: "ele" lança pragas e dizima populações inteiras só porque foi contrariado (lembra alguém que todos conhecemos).
Fato é que essa carência da espécie humana em sua saga digital de portar a verdade definitiva sobre tudo é um traço comum a todos nós.
Não se permita dizer: 'eu não faço parte disso'.
Faz.
É uma tendência natural dos processos de produção de discurso, que faz com que completemos nosso ciclo (beat) de subjetivação.
Como dizem os lacanianos, inscrevemo-nos nesse ciclo (simbólico) sem cessar, a todo momento.
Esse gesto coletivo da cura do mundo e da salvação via gargarejo é, afinal, a morte da ciência (e vejam como eu também posso ser prepotente e populista).
Existe a retórica e os movimentos ilocutórios (que costumam desaguar em ironia), mas explicar isso aqui levaria muitas teclas.
A ciência vive dilemas terríveis. Foi arrastada para a lógica do mercado financeiro. Pesquisadores insistem, mas operam na engrenagem esfoliante do capitalismo selvagem.
Raramente, vemos um usuário de rede social dizer: "se x for verdade, então temos y", a argumentação clássica do discurso científico.
Falar que "o gargarejo é bom para matar os vermes do coronavírus" não precisaria ser de todo ruim, desde que o enunciador tenha a humildade de dizer que a ciência ainda não tem resposta definitiva para tal desafio e que é preciso seguir protocolos de segurança social à risca para cercar a pandemia por todos os lados.
O que se percebe é que o que mata mesmo é a linguagem. Generosa e infinita, ela nos oferece a possibilidade de enunciar soluções e produzir tecnologias. Genocida e autoritária (Roland Barthes já havia dito algo parecido há 50 anos), ela nos imprensa contra o paredão da história, regulando populações de um jeito anti-humanista - afinal, "linguagem não é gente".
Talvez seja a hora de prestarmos mais atenção a ela, a linguagem. A espécie humana - me parece, não tenho certeza - tem um medo atávico de descobrir como a linguagem funciona. É, até hoje, um campo marginal do conhecimento.
Sujeitos descobrem a fissura do átomo, a antimatéria, a origem do universo, mas tropeçam em identificar uma partícula gramatical elíptica, porque aquilo parece coisa do demônio.
Enquanto isso, em meio à pandemia, vamos propagando a derrota para o vírus de maneira assentida e tranquila, como o antílope que tem a jugular rasgada por uma leoa e agoniza suavemente até ser devorado, como se aquele fosse o seu digno destino e o que o reveste da identidade de 'antílope'.

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