sexta-feira, 17 de abril de 2020

Genocídio à brasileira


"No país em que mais se mata no mundo (polícia, trânsito, feminicídio, genocídio do povo indígena, do povo negro, da comunidade LGBTQ) o que esperar na condução de uma crise de proporções colossais como essa epidemia de coronavírus?"

Pela forma com que Bolsonaro tem acusado Maia, Alcolumbre e Doria (de conspiração contra ele) é lícito dizer que a Abin deve estar espionando TODOS eles.
Seria querer demais comportamento republicano da Abin a essa altura do campeonato.
Caminhamos para o fosso.
Tem esquerda? Tem e é forte.
Mas a esquerda luta dentro de regras.
Por mais distópico e apocalíptico que um cenário fictício possa ser, ele perde para a realidade brasileira neste momento.

Bolsonaro representa uma fuga da realidade. E fugas da realidade têm sido uma das experiências cognitivas mais disputadas pela espécie humana nos últimos 50 anos.
Algumas fugas da realidade são lícitas: religião, maconha, cinema, esporte, literatura, álcool. Elas, a rigor, nos possibilitam uma experiência posterior renovada com a realidade - nem todas talvez.
Mas o dilema permanece.
Há uma demanda real em nossa economia psíquica que se equilibra na fuga permanente da realidade - e se começarmos a argumentar mais e mais, daqui a pouco estaremos nos perguntando: mas, afinal, o que é a 'realidade'?
A palavra é infernal (infeliz, equivocada, enganosa) - como diria Eugène Ionesco, a etimologia leva ao crime. 'Realidade' vem de 'real', que vem de 'rei'. Exatamente o sentido contrário daquilo que pensamos entender por 'realidade'.
Daí o caráter institucional da famigerada palavra.
Nossa atividade simbólica - que nos estrutura enquanto sujeitos - nos obriga a construir mundos simbólicos, paralelos, autossuficientes.
Em tempo: a relação transparente entre linguagem e mundo é mito empoeirado de velho. Mikhail Bakhtin já dizia há mais de 50 anos que a linguagem não reflete a realidade, mas 'refrata'.
O dilema é suportar a fuga da realidade sendo produzida do lugar que mais deveria se aproximar dela, posto que tratar-se-ia de uma realidade coletiva (a realidade da governança, da democracia, da sociedade).
Minha realidade forjada, individual e romântica, não pode se sobrepor à realidade forjada coletiva, regulatória e polifônica.
Talvez venha daí o apelo inarredável que Bolsonaro exerce na parcela adoecida - fragilizada intelectualmente - da nossa população.
Na incapacidade de forjar suas próprias fugas através da arte e da atividade intelectual, essa massa de cortesãos joga sua própria vida biológica (na ausência de uma simbólica) nas mãos de um ente que lhes aplaca a insignificância.
Não admira que parte considerável da população brasileira - e não falo apenas de bolsonaristas - queria deliberadamente fechar os olhos para a epidemia mortal que devasta o planeta.
É reconfortante ignorar tudo isso. Vive-se melhor (e morre-se melhor ainda).
A psicanálise formula essa pulsão permanente de morte de maneira quase didática, mas quem quer desperdiçar seu "tempo precioso" compreendendo do que é feito o sujeito?
O Brasil de Bolsonaro é o coquetel da morte mais bem acabado da história. Para se dizimar uma população e um país, temos a epidemia certa no governo certo na hora certa na sociedade certa.
Nossa falta de consciência política estrutural é o nosso green card para a morte. A autoproteção do ser humano/sujeito com relação à própria vida biológica, por sua vez, é uma falácia.
Autoproteção instintiva tem os animais. A espécie humana precisa construir simbolicamente seu sentido de autoproteção - que é político.
O que estamos vendo no Brasil? Esse sentido de autoproteção completamente esvaziado, esmagado pela cultura da fuga confortável da realidade - o nosso famoso berço esplêndido.
Fuga que é comum a todos os seres humanos, mas que no Brasil ganhou proporções estruturais - e identitárias - que extrapolam a literatura técnica do campo.
O vírus impõe uma cena é tão complexa que não há escapatória. Os médicos mais celebrados falam besteiras monumentais. As lideranças de esquerda - a exceção de Lula - agem como baratas tontas. Ativistas alinhados ao progressismo desfilam seus egoísmos a céu aberto, imunes a qualquer espírito crítico.
É bom lembrar: falo aqui do campo que ainda 'pensa' - ou acha que pensa - porque o outro campo sequer flerta com essa possibilidade.
Há uma estranha 'terceirização de risco': o jovem autoproclamado portador de consciência política e social que encomenda por telefone sua compra de supermercado a título e respeitar a quarentena, quando na verdade, também expõe o entregador.
Essa é a lógica que nos toma. A lógica escravocrata é estrutural no Brasil. Ser estrutural não é pertencer apenas ao "outro" lado, é estar dentro de nós o tempo todo - e é preciso combatê-la, agir anti intuitivamente, no limiar ético da autoidentificação progressista.
No país em que mais se mata no mundo (polícia, trânsito, feminicídio, genocídio do povo indígena, do povo negro, da comunidade LGBTQ) o que esperar na condução de uma crise de proporções colossais como essa epidemia de coronavírus?
Talvez, seja esse o choque que a sociedade brasileira tanto precisava para sair de sua eterna 'perplexidade paralisante'.
Poderemos nos recuperar no futuro - e chorar mais tarde as perdas de vidas que vão sendo acumuladas como a própria riqueza brasileira ao longo dos séculos.
Quem sobreviver poderá confirmar. Ou não.

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