quarta-feira, 24 de junho de 2020
Espaçosos
"O capitalismo brasileiro está nu. O golpe de 2016 fez desaparecer as mediações políticas e os amortecedores na luta de classes. Esses burocratas que hoje aplaudimos quando invadem o domínio das instituições democráticas não estão, nunca estarão, do lado dos interesses das classes trabalhadoras. Não permitamos que se agrandem"
Já estava quase me acostumando. Parecia normal. Todos os dias vemos notícias de algum juiz de primeiro grau, do alto da legitimidade auferida em concurso, determinar como o prefeito deve administrar a cidade. Assistimos, com inquietante frequência, o MP interferindo nas decisões sobre o que deve ficar aberto ou fechado durante a pandemia. Agora sabemos que os tribunais de contas exigem posturas de prefeitos e governadores e já não nos surpreendemos. A política foi judicializada.
Não precisamos mais da democracia na nova normalidade. Temos uma laboriosa casta de burocratas dizendo o que pode e o que não pode, obrigando os políticos a agirem de uma forma e não de outra.
E fui me acostumando. Achando até bom. São preparados, conhecem as leis e têm suas competências comprovadas pela aprovação em concursos. Têm méritos. Sabem o que é melhor para as cidades, para os estados e para o país. Os políticos são como os eleitores deles. Desqualificados. Não sabem votar e não sabem ser votados. São facilmente manipulados em suas ingenuidades. Todo poder emana da aprovação em concurso e em seu nome será exercido.
O povo é bom. Ignorante, mas com uma pureza d’alma tamanha que se deixa conduzir por pastores sem escrúpulos, por padres dissimulados, por políticos oportunistas, por governantes irresponsáveis. As ruas estão cheias de gente sem máscaras, há aglomeração nos shoppings e nas praças públicas, por culpa dos políticos. Aquelas pessoas boas, puras, que formam o povo só querem viver a vida do jeito que sabem. Não aguentam mais o distanciamento. Não têm culpa. A responsabilidade é dos prefeitos, dos governadores, do presidente. Isso não tem nada a ver com a maneira capitalista de existir em sociedade. Não?
Para nossa fortuna, graças ao bom deus, temos a burocracia pública, modernos mandarins com méritos atestados por concurso, para dizer como prefeitos devem agir, como governadores devem regular e, até, como o presidente deve sair às ruas durante a pandemia ou como a sociedade deveria funcionar segundo seus interesses e sua visão de mundo. Esse protagonismo me incomoda. O lavajatismo normalizou-o. Imagino como agiria essa parcela da burocracia em um governo de esquerda.
Já estava me acostumando. Achando tudo isso normal. Todavia, ocorreu-me pensar em que tipo de sociedade queremos viver. Sou esquisito. Não suportaria viver em uma sociedade em que uma minoria sobre-remunerada, sem ter sido eleita, se arvorasse no direito e no poder de, por cima das instituições do estado burguês, decidir o que pode e o que não pode na administração das cidades, dos estados e do país. Se podem determinar o que abre e o que não abre durante a pandemia, exagerando no argumento, poderão também decidir coisas menos importantes como quais partidos políticos podem existir, quais greves serão aceitáveis, que movimentos sociais serão permitidos e quais os limites das garantias, dos direitos e das liberdades. Não confio na Direita Concursada. São espaçosos. Não vejo os concursos públicos como fonte de legitimidade das decisões que tomam.
E por pensar assim não fico mais tão confortável. Acho melhor já ir me desacostumando à normalidade que certas práticas reiteradas nos impõem em nome do bem-estar do povo, essa abstração que desconsidera as desigualdades intrínsecas de uma sociedade dividida em classes sociais antagônicas.
Wilson Ramos Filho (Xixo), doutor em direito, integra o Instituto Defesa da Classe Trabalhadora.
#DiretasJa
#ForaBolsonaro
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