segunda-feira, 9 de novembro de 2020

É bíblia, Deus e águia, por Gustavo Conde

Foto: Reuters
O discurso de vitória de Biden parece um discurso de despedida. O tom é de adeus, o adeus dos EUA como maior potência do mundo. Todos os pressupostos ali são de uma nação aos cacos, desunida, assustada, traumatizada. Ou seja: está tudo por ser (re) construído, o que não passa de uma promessa.
Biden também é evasivo, mas é beneficiado pelos parâmetros de comparação que lhe foram presenteados pela história: ele é comparado a Donald Trump.
Essa sorte dá a Biden a possibilidade de fugir de todas as pautas reais que afligem o mundo conflagrado pelo poderio egocêntrico dos EUA: guerras, protecionismo, espionagem, tortura, bloqueios, censura, perseguição, enfim, toda a série de abominações que os EUA promovem mundo afora.
Trump foi ‘bom’ para os EUA porque permitiu que os verdadeiros problemas estruturais daquele país fossem escamoteados pela catástrofe social doméstica. Trump abriu uma ferida interna e possibilitou o “esquecimento” das feridas externas.
Não há trampolim melhor para a hipocrisia. Aliás, todos estávamos com saudade dela, a hipocrisia.
O discurso de vitória de Biden é isso: um festival de enunciados vazios, autobajulatórios e abertamente megalomaníacos (queremos ser o exemplo para o mundo).
Não é à toa que a ideia central do discurso é “restaurar a alma da América”. Qual o significado deste enunciado? Reafirmar o poderio imperialista dos EUA que foi avacalhado por Donald Trump. Vamos ficar felizes com isso - e celebrar como cãezinhos adestrados?
É um coquetel retórico de messianismo, imperialismo, prepotência e indiferença.
É também, no entanto, uma confissão de fraqueza. Quem se autobajula demais, deixa a fresta das fragilidades escancarada. Biden não fala do mundo, não fala da China, não fala de multilateralismo. É bíblia, Deus e águia.
Os estadunidenses vêm falando essa ladainha há séculos: uma América das possibilidades, uma América que não desiste nunca (alguém já viu isso antes?), uma América que nunca se rende… Uma América que é só deles, inclusive na autodenominação megalômana: América e americanos (a América, afinal, é muito maior do que isso).
O plano do mercado financeiro deu certo. A ascensão da extrema-direita era apenas e tão somente para isso: para re-empoderar o discurso liberal - ao contrário dos que sonha a ingenuidade global progressista, tão vacinada intelectualmente quanto uma tábua de passar roupa.
Por contraste, temos um Biden salvador do mundo, como poderemos ter em breve, no Brasil, um Luciano Huck.

Afinal de contas, entre Luciano Huck e Bolsonaro, a escolha não é tão difícil. Ou é? 

Um comentário:

  1. Conde elucida as intenções do discurso do Biden e aponta o eu da supremacia em estado gelatinoso.

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