A Revista Piauí publicou, no último dia 12 de março, matéria das jornalistas Monica Gugliano e Tânia Monteiro intitulada “O general, o tuíte e a promessa”, com uma revelação bombástica: o Ministro Dias Toffoli, dias antes da posse na presidência do STF, teria prometido ao General Vilas Bôas manter o ex-presidente Lula preso.
Segundo a matéria, o general teria declarado a interlocutores que
“Ele [Toffoli] nos procurou e aí nos afirmou, nos garantiu: ‘Vocês fiquem tranquilos. Enquanto eu estiver na presidência [do STF] não haverá alteração da lei de anistia e tampouco outras coisas de caráter ideológico.’”
“Nos afirmou que até a eleição ele não ia pautar nada que alterasse a situação do presidente Lula, tanto do ponto de vista de punição de segunda instância, quanto da questão da lei da ficha limpa eleitoral.”
Embora não tenha podido negar a visita, Toffoli negou que tenha feito a promessa. Mas é fato que no dia 17 de setembro de 2018, em sua primeira coletiva de imprensa como presidente do Supremo Tribunal Federal, o ministro Toffoli disse que não pautaria “casos polêmicos” em 2018 e deu como exemplos as ações declaratórias de constitucionalidade que tratavam da execução de pena antes do trânsito em julgado, que interessavam diretamente ao ex-presidente Lula.
E as supostas declarações do general se harmonizam, à perfeição, com o comportamento de Dias Toffoli, antes e depois de assumir a presidência do STF. No mesmo dia em que tomou posse, 13 de setembro de 2018, Toffoli nomeou assessor especial da presidência, por indicação do general Eduardo Villas Bôas, o general da reserva Fernando de Azevedo e Silva, que até duas semanas antes fora chefe do Estado Maior do Exército, segundo posto na hierarquia da Arma. A escolha configurou fato sem precedente na história da presidência do STF.
Em 1 de outubro de 2018, durante discurso em seminário sobre os 30 anos da Constituição de 1988, em evento na Faculdade de Direito da USP, o presidente do STF voltou a afirmar que preferia se referir ao golpe de 1964 como movimento militar, repetindo o que dissera aos juízes do trabalho participantes do Congresso Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho, em 5 de maio de 2018, em Belo Horizonte.
Quando o TSE já havia rejeitado o registro da candidatura de Lula à presidência da República, a Folha de São Paulo e o jornalista Florestan Fernandes apresentaram reclamação ao Supremo Tribunal Federal, com o fito de entrevistarem o ex-presidente Lula, em Curitiba. Em 28 de setembro de 2018, o ministro Ricardo Lewandowski, invocando a “plena liberdade de imprensa como categoria jurídica proibitiva de qualquer tipo de censura prévia”, acolheu a pretensão, indicando que a decisão da 12ª Vara Federal de Curitiba, ao não permitir as entrevistas, violara frontalmente o que decidira a Corte na ADPF 130/DF.
No mesmo dia, o vice-presidente do STF, ministro Luiz Fux, concedeu a liminar requerida pelo Partido Novo, determinando que o ex-presidente Lula se abstivesse “de realizar entrevista ou declaração a qualquer meio de comunicação, seja a imprensa ou outro veículo destinado à transmissão de informação para o público em geral” e, para o caso de já haver sido realizada a entrevista, proibindo a “divulgação do seu conteúdo por qualquer forma, sob pena da configuração de crime de desobediência”. No dia 1º de outubro, Lewandowski reiterou a autorização das entrevistas, sob o argumento de que Fux incorrera em vícios gravíssimos e que a decisão dele era “absolutamente inapta a produzir qualquer efeito no ordenamento legal”. Ato contínuo, o presidente Dias Toffoli suspendeu a decisão de Lewandowski, determinando que se cumprisse, “em toda a sua extensão, a decisão liminar proferida, em 28/9/18, pelo vice-presidente da Corte, ministro Luiz Fux, no exercício da Presidência, nos termos regimentais, até posterior deliberação do Plenário”.
O presidente, assim, arvorou-se em revisor das decisões dos seus colegas de bancada e instituiu uma hierarquia interna no STF, a supremacia do presidente. As decisões de Fux e Toffoli representaram fato inédito. Nunca antes uma liminar concedida por membro do STF fora cassada pelo presidente da Corte. Mais que isso, fixaram um perigoso precedente.
Em outubro de 2018, a Revista Época afirmou que a adulação dos militares tinha servido para Toffoli melhorar sua imagem perante o Alto-Comando do Exército: “Além da decisão de colocar um militar em seu gabinete, os generais gostaram do adiamento para 2019 de um novo julgamento sobre as prisões em segunda instância, que poderá tirar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva da cadeia, e da ratificação do veto à entrevista do petista antes do primeiro turno das eleições”.
Em 27 de novembro de 2018, o general de divisão da reserva Ajax Porto Pinheiro foi confirmado como novo assessor especial do presidente do STF, também indicado pelo comandante do Exército, general Villas Bôas, para substituir o general Fernando Azevedo e Silva, anunciado por Jair Bolsonaro como futuro ministro da Defesa.
Em 19 de dezembro de 2018, véspera do início do recesso forense, o ministro Marco Aurélio proferiu decisão determinando a suspensão de execução de pena antes do trânsito em julgado da condenação, bem como a libertação daqueles que tinham sido presos em tais condições. A decisão de Marco Aurélio veio em resposta à postergação pelo presidente do STF do julgamento das ADCs que tratam da matéria, que fora liberada pelo relator em 10 de abril de 2018, porque se estava “diante de quadro a exigir pronta atuação, em razão da urgência da causa de pedir lançada pelo requerente na petição inicial desta ação e o risco decorrente da persistência do estado de insegurança em torno da constitucionalidade do artigo 283 do Código de Processo Penal”.
A imprensa noticiou que, assim como ocorrera no dia 4 de abril, data do julgamento do habeas corpus de Lula, após a decisão de Marco Aurélio, o Alto Comando do Exército se reuniu em videoconferência para discutir as possíveis consequências da decisão que beneficiaria, entre outros presos, o ex-presidente. Um oficial ligado ao Alto Comando disse ao UOL “que a reunião não tem caráter reativo, mas sim proativo. Ou seja, o Exército discute possíveis cenários que podem ser gerados no país pela decisão - inclusive eventuais manifestações ou distúrbios populares”. E outros dois generais ligados à cúpula do Exército disseram ao mesmo veículo que o momento era de observação e que acreditavam que a medida poderia ser derrubada no mesmo dia, ou durante o plantão, pelos ministros Dias Toffoli e Luiz Fux.
O General Paulo Chagas fez duras críticas ao ministro Marco Aurélio e afirmou:
“Dias Toffoli tem a melhor oportunidade da vida dele para justificar a sua nomeação para a mais alta corte da magistratura brasileira, mesmo sem ter tido mérito para integrar a sua primeira instância”.
Poucas horas depois, o presidente Toffoli suspendeu a decisão do ministro Marco Aurélio, alegando a necessidade de prestigiar a decisão colegiada do STF.
Na solenidade de posse como Ministério da Defesa, o general Fernando Azevedo e Silva, na presença de Toffoli, afirmou que o presidente da Suprema Corte e a Procuradora-geral da República, Raquel Dodge, “sinalizavam a disposição de atuar como catalisadores da estabilidade institucional de que o país tanto precisa”.
Já como ministro da Defesa, Azevedo e Silva, no discurso que fez em homenagem ao general Villas Bôas, no dia em que este deixou o comando do Exército, afirmou: “Seu grande feito não pode ser medido com olhos rasos. A maior entrega desse comandante foi o que ele conseguiu evitar. Foram tempos que colocaram à prova a postura do Exército como organismo de estado, isento da política e obediente ao regramento democrático”.
Mas as gentilizas de Toffoli não asseguraram reciprocidade. Militares destinaram ao STF e aos seus membros os piores encômios: “ministro criminoso”, “comparsa de bandido”, “conivente com o crime”, “quadrilha”, “salafrária”, além de ameaças escancaradas de descumprimento das decisões da Corte e de intervenção. Em quase todos os casos, o presidente do STF silenciou. Em outra de suas edições, Época informa que, quando o coronel da reserva Carlos Alves chamou de “salafrária” a ministra Rosa Weber, “Toffoli não se pronunciou sobre o caso e considerou exagerada a reação dos colegas, que usaram as sessões da Corte para repreender publicamente o comportamento do coronel”. E só reagiu aos ataques do deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-RJ), após a divulgação do vídeo em que o parlamentar cogita fechar o STF, depois de aconselhado pelo general Fernando Azevedo e Silva.
“Por que o futuro presidente da mais alta corte do país visita o comandante do Exército para lhe prometer que Lula, o principal nome da oposição a Bolsonaro, continuará na cadeia?”, perguntam as jornalistas autoras da matéria da Piauí.
Em artigo publicado no ano de 2004, procuramos explicar (ZAVERUCHA, Jorge; MELO FILHO, Hugo. Superior Tribunal Militar: entre o autoritarismo e a democracia. In: Revista Dados, v. 47, n. 4, 2004, pp. 763-797):
“[Determinados fatos] induzem desconfiança nos segmentos conservadores, prontos a se insurgirem contra qualquer risco de desmanche da economia de mercado, base da democracia liberal. Nesse contexto, a cultura do medo trabalha contra a democratização, pois induz desconfiança entre os atores políticos, em vez de cooperação. Quem tem medo tende a procurar segurança, como a propiciada pelo poder armado. [O medo] impele os atores políticos de direita a concordarem com a manutenção de espaços políticos significativos sob o controle militar, na expectativa de que tais arenas concorrerão, naturalmente, para a preservação dos seus interesses. (...) Em síntese, a direita cuida de manter um bom relacionamento com as instituições coercitivas para que possam reprimir possíveis insubordinações populares e, no limite, golpear a frágil democracia existente. Os militares entendem a natureza do jogo e cristalizam a estratégia de manter o seu protagonismo em arenas políticas não militares.”
A matéria da Piauí revelou a surpresa do General Vilas Bôas quanto ao fato de o apoio ao tuíte ameaçador de abril de 2018 haver sido aprovado por outros ministros do STF, além de Toffoli:
“Eu achei interessante que na posse do Toffoli a quantidade de pessoas que vieram se solidarizar comigo, me cumprimentar, pessoas que eu nem conhecia (...). O que foi presidente do STF, o Joaquim Barbosa… E olha, os ministros todos, eu fiquei impressionado com aquela onda de solidariedade e de apoio.”
No mesmo mês em que ministros do STF se solidarizavam com o Comandante do Exército por ele haver ameaçado a Corte e a democracia, o Uruguai deu o exemplo de como comportamentos como esses devem ser tratados. Por muito menos do que isso, o então presidente do Uruguai, Tabaré Vázquez, ordenou a prisão do comandante do Exército daquele país, general Guido Manini Ríos, por 30 dias, por ter opinado desfavoravelmente sobre um projeto de lei proposto pelo governo. E, em março de 2019, Manini Ríos foi exonerado pelo Presidente, por críticas à Justiça do país.
O comportamento do presidente do STF e de outros membros da Corte não poderia atrair senão desrespeito. Afinal, quem muito se abaixa... Com efeito, as diversas e decisivas concessões à direita e aos militares feitas pelo Supremo Tribunal Federal, a partir de 2015, não foram o suficiente para aplacar a ira dos extremistas contra a Corte, que se agudizou em março e abril de 2019 (após decisão sobre a competência da Justiça Eleitoral para investigar casos de corrupção quando envolverem simultaneamente os crimes de caixa 2 de campanha e crimes comuns, como lavagem de dinheiro) e não parou mais. Por vários meses de 2020, mesmo em plena pandemia, as manifestações ocorreram, semanalmente, incentivadas pelo presidente da República e asseclas, que delas participavam.
Após um período de trégua, neste 14 de março, as manifestações contra o STF e a democracia foram retomadas. Em várias cidades do país, no momento mais dramático da pandemia, irresponsáveis apoiadores de Bolsonaro foram às ruas, sem máscaras, e promoveram aglomerações clamando por golpe militar e fechamento do Supremo. Não se sabe quando – e como - isso terminará.
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