sábado, 1 de maio de 2021

Cosmopolitas, por Wilson Ramos Filho

O gentílico parece que foi feito para meu pai, o Seu Ramos. Nasceu na divisa, do lado de lá do trilho do trem que cortava a região do contestado, porque ali ficava a maternidade de Porto União, mas morava na paranaense União da Vitória, em 1934. Porto União da Vítória, junção das duas, terra dos portunieses, cidade geminada onde a verdade teve sempre menos importância que uma boa história.
Uma coisa leva a outra. Morreu o astronauta Michael Collins da Apolo XI, aos noventa anos, vi nas redes sociais. Lembrei-me do anterior. Não este bolsonarista especialista em vender travesseiros e em bajulação. Recordei-me do primeiro brasileiro que foi à lua, em 1969, na missão seguinte da NASA com a Apolo XII, logo após o milésimo gol do Pelé. Se você não sabia é porque não teve o privilégio de conversar com um portuniense da geração do Seu Ramos, com o Seu Horst da Comercial Bandeirantes, arquivo vivo da memória local ou com um dos numerosos descendentes da família Buch, cujo patriarca chegou à região junto com os Konrad e com os Rehme, com os Slomp, com tantas outras famílias que para lá emigraram durante a grande crise alemã que se seguiu à proclamação da República de Weimar.
Toda cidade tem seus mitos, seus fantasmas e seus heróis. No caso de Porto União da Vitória, como se sabe, é a mais pura e verdadeira verdade, temos um herói que é também mito espectral. Ou vice-versa.
Vamos aos fatos. Lá para as bandas do Maratá, distrito de Porto União, perto da cachoeira, no final da década de vinte, nasceu aquele que, 40 anos mais tarde, pisaria o solo lunar. Charles Konrad, segundo filho de um Imigrante alemão que veio dar nos pinheirais e hervais por azar.
Pretendendo se reagrupar com o restante da família que havia emigrado poucos meses antes para San Francisco, nos Estados Unidos, o desafortunado pai do futuro astronauta, distraído, em Marselha, tomou navio errado. Chegou em São Francisco, do Sul, em Santa Catarina. Com o pouco que tinha e, à falta de coisa melhor para fazer, subiu a serra, de carroça com seus compatriotas, para explorar a farta madeira nativa. Bem apessoado, trabalhador, logo arrumou casamento com a também imigrante Ana Rehme com quem teve dois filhos magricelas, Erna e Charles, sortudos por verem a luz em tão formosa geografia.
No início dos anos 30, finamente, depois de intensa troca de correspondências, conseguiram partir, de mala e cuia, já acostumados ao mate, para o porto de Santos. De lá tomaríam o vapor que os levaria ao encontro do resto da família, já na Flórida, onde Erna e Charles foram novamente registrados, agora como estatunidenses, substituindo o tedesco Konrad pelo anglo-saxônico Conrad, Concê, se for permitida uma referência contemporânea aos delicados apelidos Conká, Senká, Conxis, entre outros, com que alguns semideuses são referidos, nas movimentadas manhãs de sábado em Porto União da Vitória. É a mais pura verdade, juram os portunienses. Saiu até na imprensa americana. Há fotos que comprovam os fatos. Durante anos os impostos municipais sobre os 240.000 metros quadrados do velho Konrad foram pagos pelo cunhado José Rehme na prefeitura de Porto União, todos sabem.
Na cidade xifópaga, unida pelo traçado da hoje desativada linha férrea, os mais velhos contam que, em plena segunda guerra mundial, os Konrad voltaram para visitar os Rehme, por alguns meses, trazendo com eles apenas o Charles com 10 ou 11 anos. Erna não veio. Foi mais ou menos nesta época que sumiram umas páginas do livro de batismo do Frei Osmundo, da matriz de União da Vitória, pimenta local para nossa história, onde todas as crianças eram registradas. Foi a última vez que estiveram no Brasil. Pouco depois do retorno aos Estados Unidos, Charles Conrad Jr conseguiu uma bolsa de estudos na NASA e o resto da história todos os portunienses conhecem, com pequenas variações.
São relatos do ocorrido no tempo em que a terra era azul. E redonda. Em que as cidades eram locais de encontro e de circulação das sociabilidades nas vidas compartilhadas ao pé do fogão a lenha, alimentadas com pinhão na chapa e vinho ruim produzido pelos italianos de serra abaixo, quando ainda não era errado falar mal de polacos e ucranianos, outra tradição portuniense. Dos tempos dos antigos em que conkás, senkás, conxis não teriam a coragem de desacreditar as instituições, quando um substantivo próprio não ousaria, por vaidade, indultar pecadilhos e, com isso, se tornar adjetivo de suas medíocres escolhas ideológicas. Dos tempos em que os fatos falavam, em alemão, como mencionou um colega deles. São memórias do tempo em que Porto União e União da Vitória ainda não eram uma cidade só, embora fossem ficando cada vez mais parecidas consigo mesmas.
O passado, e não só na divisa entre Paraná e Santa Catarina, sempre se constitui em invenção, fruto da recriação do havido, com alguma margem de arbitrariedade, mas com apoio em fatos, que falam. As histórias das cidades e das gentes que lhes dão vida e finalidade, inventadas ou não, conformam nossas contemporaneidades, nossas cosmovisões, e nos permitem sonhar futuros e passados que nos encantam e nos permitem fugir das desgraças e das misérias do presente. Essa é a magia.
O Seu Ramos não conheceu o velho Rehme, cunhado do Konrad conká que virou senká, pai do astronauta brasileiro, mas se divertia com esta história com a mesma intensidade com que vibrou quando Pelé fez seu milésimo gol, mais ou menos naquela mesma época. Não teve a sorte de conviver com o menino franzino apenas cinco anos mais velho que ele na beira do rio Iguaçu, nem teve a oportunidade de ir para os isteites, mudar de nome e virar cosmonauta. Também não teve a fortuna de viver na Flórida, como os Conrad, como Pelé, jogador do Cosmos. Mas se tem algo que não conseguiram tirar dele foi o orgulho portuniense de ser conterrâneo de alguém que esteve na lua. É a mais pura verdade.

Wilson Ramos Filho (Xixo), 28 de abril de 2021 

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