domingo, 12 de setembro de 2021

A qualificação da psicologia no Brasil *, por Ana Bock, Marcos Ferreira e Elisa Zaneratto

No processo de democratização vivido pelo Brasil, desde o fim da ditadura, cresceu a demanda da sociedade por contribuições da Psicologia. Ficou claro que era preciso ampliar a presença da profissão na sociedade, e isso incluía ampliar o mercado de trabalho. Mas não ampliar de qualquer jeito. Era preciso garantir, ao mesmo tempo, ampliação de qualidade na atuação profissional. Para isso foi preciso articular esforços de muitas organizações da Psicologia.

O aprimoramento da prática profissional, portanto, foi também um dos eixos do projeto do Compromisso Social da Psicologia, que norteou esses acontecimentos da virada do século. Foram muitas realizações que marcaram a virada do século: 1) proteção e aprimoramento dos instrumentos de trabalho; 2) política editorial voltada ao aprimoramento de práticas e debate sobre o contexto de sua aplicação, 3) apoio à divulgação dos periódicos científicos da área, 4) regulamentação de práticas que vão desde o registro das ocorrências no atendimento em clínica até a definição de que profissionais da psicologia deviam combater racismo, 5) reconhecimento e credenciamento de profissionais especialistas, 6) programação de eventos voltados sobre os temas contextuais à prática e à formação profissionais, 7) mecanismos de facilitação do acesso ao conhecimento produzido nas universidades (como a Biblioteca Virtual e os Congressões), 8) chegando à criação de um centro de referência para as práticas em política públicas, 9) adequação do próprio Código de Ética às novas relações da Psicologia com a sociedade. 

Foi preciso também destacar a necessidade de rigor com os testes psicológicos. Testes são uma referência importante na profissão (há poucos meses, correu na Psicologia uma denúncia enganadora e apócrifa de que o atual CFP não cuidava dos testes. Mesmo não sendo grande o número de profissionais que os utilizam, essa fake news correu o país de forma acelerada); 


A aplicação de testes foi algo que dividiu os profissionais da área na década de cinquenta e desse enfrentamento, resultou a Psicologia como profissão universitária.

 

Pois bem, como a política era a de qualificar o fazer profissional, tomamos os testes nas mãos, com a finalidade de tratar essas ferramentas com a dignidade que a profissão merece. Convocamos as maiores referências nesse tema para nos ajudar.


A primeira constatação que eles nos apresentaram foi a que nenhum teste que estava em uso no começo do século tinha reais condições de uso, não eram validados, não estavam padronizados, utilizavam padronização estrangeira. Foi, então, construído um acordo entre todos os conselhos federal e regionais, tendo ouvido os profissionais especialistas e pesquisadores universitários, sobre o que devia ser feito.


O CFP (Conselho Federal de Psicologia) de então deu prazo para que os editores procedessem à padronização e validação dos testes, sob o risco de não poderem mais vender os testes. Foi criado um sistema voltado para a manutenção desse cuidado com os testes, o SATEPSI. Na sequência, houve um teste importante cuja venda ficou impedida por não manter atualizada a validação.


Política Editorial


Uma forma de contribuir para a qualificação da prática profissional foi fazer da Revista Ciência e Profissão um instrumento de intensa difusão dos trabalhos realizados na produção de conhecimento no país. Houve um crescimento exponencial de manuscritos, mas havia uma limitação imposta pelos custos, principalmente de envio da revista que ia para a casa da totalidade de profissionais.


Foi aí que propusemos para a autarquia a digitalização da Ciência e Profissão. Na mesma proposta foi incluída a criação da Revista Diálogos, com projeto definido de debater a conjuntura onde a prática profissional está inserida. Apresentamos uma terceira proposta aprovada pela APAF que não chegou a ser realizada, que era um anuário de revisões da produção científica e das práticas profissionais. Esse anuário seria digital e publicado em português, castelhano e inglês.


Era uma forma de fortalecer a qualidade do desempenho profissional e, ao mesmo tempo, informar muitos outros países sobre o que estava sendo feito no Brasil.


Regulamentação da Profissão


É importante frisar que os conselhos profissionais são da Sociedade e não dos profissionais. Conselhos recebem delegação do Estado para mediar a relação entre a profissão e a sociedade.


No caso do CFP, seu papel seria identificar as fragilidades da prática e apontar formatações que adequariam o fazer profissional ao contexto, mantendo o rigor da profissão. Alguns exemplos de mais de vinte anos atrás poderiam ser o papel de profissionais no combate ao preconceito racial, ou em que condições seria adequado fazer o atendimento online, sobre o que se sabia muito pouco.


Não podíamos aceitar que o modismo do online fosse transportado de forma naturalizadora para a prática profissional - os problemas que debatemos há vinte anos ainda são alvo de preocupação.

 

No evento que o Instituto Silvia Lane realizou em dezembro passado, ficou claro que ainda temos muitos problemas nessa área, embora nossas entidades estejam no empenho máximo para equacioná-los. Exemplo disso é o uso de plataformas em que os encontros são devassáveis.

 

Naquele momento, realizamos o Psicoinfo, seguindo a lógica de juntar interessados e experts que pudessem apoiar propostas de regulamentação. Os eventos temáticos tinham um papel de escuta e avaliação da necessidade de oferecer forma para as práticas profissionais. Quando a conclusão era a da necessidade de uma orientação, vinha uma resolução, sempre discutida de forma ampla na autarquia e, muitas vezes de forma aberta com a categoria e com a sociedade.


Um exemplo é a revisão do Código de Ética, que ganhou uma feição capaz de incorporar os desafios das realidades que estavam se impondo. Importante indicar que, por meio das resoluções, a sociedade ganha instrumentos para reconhecer e exercer controle social sobre a prática profissional. 

 

Esse foi o caso também da regulamentação das especialidades: a criação da ABEP e a qualidade da prática profissional. 


Temos uma quase tradição na profissão de todo debate sobre qualidade profissional resultar em propostas de para mudar currículo. Isso é tão forte que os Conselhos sempre tinham uma comissão de formação. Havia uma permanente disputa entre organizações para ver quem era responsável. E o pior, quando uma entidade estabelecia um plano de ação, era deixado de lado no momento em que a diretoria era renovada. 


O resultado: quando todo mundo cuida, ninguém cuida.


Daí, criamos a ABEP (Associação Brasileira de Ensino de Psicologia) - o FENPB (Fórum de Entidades Nacionais da Psicologia Brasileira) criou a ABEP -, a entidade com mais extensa base potencial dentro da Psicologia. Reunia professores, estudantes, coordenadores de curso, profissionais da Psicologia e profissionais de outras profissões.


Nessa condição, fizemos o debate para a definição das diretrizes curriculares. Mas era preciso atentar para a melhoria da qualidade dos profissionais que já estavam atuando.

 

Especialização como topo da profissão


Reconhecer especialistas é uma oferta de colaboração para a sociedade, tanto pelo que afirma quanto pelo que impede. Muita gente fazia um pequeno estudo ou curso e passava a se apresentar como especialista naquilo - muitas vezes podendo levar a engano as pessoas menos informadas sobre a profissão.


Há uma diferença entre fazer um curso de especialização e ser um especialista. As pessoas acham que quando você é doutor, está no topo da formação. Pode ser verdade, mas é topo de outra profissão, seja de professor, seja de pesquisador.


Na profissão, o máximo que a gente pode querer é buscar um fazer especialmente eficaz e bem contextualizado. Então, era importante reunir os profissionais mais qualificados para definir formas de indicar para a sociedade quem eram de fato os especialistas.


No primeiro momento, as pessoas poderiam acessar o título apresentando comprovação de terem trabalhado, depois foram criadas provas e certificados cursos que poderiam formar novos especialistas. A ABEP fez o credenciamento dos cursos, trouxe as formações para dentro da Psicologia e organizou esse campo.


No momento do credenciamento, descobrimos um mundo super competente, criativo e diversificado. Vale registrar que o coletivo que orientava esse processo tinha uma lógica de estabelecimento de uma ampla comunidade da Psicologia, capaz de acolher atores de diferentes tipos e interesses.


Em outro momento, valerá a pena estabelecer um quadro histórico sobre a organização da Psicologia para ressaltar seu caráter pouco inclusivo. Brincávamos com a imagem de que vivíamos um feudalismo na Psicologia.

 

Ponte entre o mundo da academia e o mundo da profissão

 

Um dos esforços para reunir atores diferentes foi feito ainda na década de 80. Reunimos Conselhos e Sindicatos para um trabalho articulado. Na virada do século houve um processo de amplificação dessa perspectiva, por exemplo, aproximar o mundo da prática profissional e o mundo da construção acadêmica.


Na prática, essas iniciativas correspondem a uma perspectiva de contínua busca de confluência de esforços. Os “congressões” são exemplo importante: reuniram praticamente todas as entidades de Psicologia do país reunidas no FENPB.


No primeiro congressão, em 2002, uma entidade fundamental de pesquisa, que é a ANPEPP, redefiniu a data de sua reunião para facilitar a participação de seus pesquisadores no evento. A reunião de quinze entidades resultou em que a cada hora do congressão acontecesse uma quantidade de atividades correspondente a um congresso inteiro de Psicologia, nos moldes anteriores.


Os congressões abriram espaço para produção e apresentação de arte, como a escultura humana com mais de três mil pessoas e apresentação de obras nas edições seguintes. Na junção das perspectivas de construção de uma comunidade ampla e estabelecimento de condições para aprimoramento profissional, foram criadas primeiro bases de dados inacreditáveis para a nossa área e, seguida, a Biblioteca Virtual.


A base de resumos de periódicos superou todas as expectativas. À época, todas as indicações eram para começarmos no ano 1998 e seguirmos adiante. Mas nós resgatamos todos os artigos publicados em Psicologia desde o final da década de cinquenta. Acabamos com outra tradição: a de começar teses e dissertações com a frase “ninguém estudou isso no Brasil”. Com milhares de artigos catalogados, ficou virtualmente impossível achar um assunto que ninguém tenha referido em nossa história.

 

Ato contínuo, passamos a valorizar mais a produção de toda a comunidade. Nossos membros não conseguiam lembrar mais do que onze nomes de periódicos. Maria do Carmo Guedes foi quem mais soube nomear, chegando a vinte títulos. Foi identificada mais de uma centena de periódicos, com todos os problemas típicos do Brasil.


Foram criadas bases de livros, de teses, de trabalho de conclusão de curso de graduação, de monografias de especialização, além do estabelecimento de um thesaurus muito mais amplo do que o estadunidense, que geralmente é só traduzido pelos países que criam bases de dados, pois a nossa BVS chegou a ser muito grande e potente.


No momento atual, ela sofre com falta de atualização, mas a Diretoria do CFP está empenhada em fazer o resgate desse instrumento importante para a formação, inclusive para quem está longe dos grandes centros. Quando formos discutir o enfrentamento do colonialismo cultural, vamos poder aprofundar outras dimensões deste patrimônio que foi e é a Biblioteca Virtual.


* Este texto é o roteiro do segundo programa da série virtual “Brasil Psi: a virada da psicologia no Brasil”


Imagem: Joan Miró (Joaquim Gomis, Mural, 1948)


Assista o segundo episódio da série:




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