sexta-feira, 24 de setembro de 2021

Ampliação da presença da Psicologia na sociedade brasileira a partir do projeto do Compromisso Social *


Por Ana Bock, Marcos Ferreira e Elisa Zaneratto Rosa


O fato mais importante hoje no país consiste no retorno da Fome à vida brasileira. Mas é preciso reconhecer que essa Fome é um projeto, não é resultado de algum erro ou incompetência técnica. Produzir fome exige método, persistência e organização.


É como se estivesse sendo implantada uma política pública de produção da Fome. Para colocar esse tema na pauta da Psicologia, estamos planejando e vamos propor ao conjunto das entidades da nossa área uma Jornada Virtual Psicologia e Fome. Fome com letra maiúscula, por se tratar de algo grave e alvo de uma ação organizada no país.


Reconhecer e combater problemas fundamentais da sociedade brasileira como a Fome e o Racismo, aspectos da desigualdade social que marca nosso passado e nosso presente, não é algo fácil e não será resultado de voluntarismos. Quando a Psicologia brasileira se compromete em travar o combate da desigualdade, fim último do projeto do Compromisso Social, é preciso fazer isso de forma organizada, com método definido e muita persistência.

Por isso,  nosso tema hoje é a expansão da presença da Psicologia na sociedade brasileira. Como foi apontado no segundo programa da série, essa expansão não pode acontecer por meio de práticas quaisquer, mas sim com a busca persistente de qualificação profissional e por meio do aprofundamento da defesa dos direitos humanos.


A Psicologia partiu de uma condição em que, no máximo quatro por cento da população poderia ter acesso aos seus serviços de nossas profissionais (como apontou a pesquisa da saudosa Silvia Leser de Mello, nos anos setenta) e chegou à condição em que é praticamente impossível um cidadão atravessar a vida sem ter tido contato com seus serviços.


Nunca a Psicologia foi tão demandada no debate social. Hoje, quase tudo tem uma referência se não à Psicologia, ao menos ao saber psicológico. Durante o processo eleitoral de 2018 isso foi muito apontado, quando fake news e fake facts foram abundantes, sempre com a perspectiva clara de disputar disposições subjetivas. A tentativa de manipular subjetividades atingiu ápices com o advento das tecnologias utilizadas pelas grandes plataformas digitais.


Dois exemplos dessa demanda: 1) no momento do advento da pandemia, profissionais de Psicologia foram chamadas quase diariamente para participar de programas jornalísticos. Grande parte das questões implicadas na adesão ou recusa dos cuidados ou mesmo na construção de saídas para a pandemia tiveram forte componente psicológico; 2) processos eleitorais foram definidos em 2020 principalmente com base nos “sentimentos” de que este ou aquele governante havia sido cuidadoso com a população no enfrentamento do vírus corona.


No momento da construção do projeto do compromisso social aconteceu uma antecipação dessa demanda. A Psicologia se ofereceu para debater temas de impacto sobre o cotidiano da sociedade. Exemplo disso foi o projeto “Não é o que parece”, um programa de duas séries com dez episódios cada um, onde foi apontada a possibilidade de a Psicologia se oferecer para ajudar a pensar a constituição de subjetividades no dia a dia da sociedade.


Foram duas séries elaboradas em colaboração com a TV Futura, em que o conteúdo foi estabelecido integralmente por profissionais da Psicologia. Cada programa demonstrava, materializava (e desmontava) algum tipo de jogo implícito com as subjetividades da população. Todos os episódios chamavam a atenção para a dimensão subjetiva da realidade e apontavam a Psicologia como fonte de informação sobre isso.


O tratamento dispensado a temas como os carteiraços (você sabe com quem está falando?) e das drogas são exemplos excelentes. A tática adotada de apresentar um quadro de pessoas com características raciais marcantes e perguntar a qual profissão estariam ligadas foi muito elucidativa, especialmente por serem pessoas reais e suas profissões serem inesperadas diante dos preconceitos mais correntes no país.


Importante notar que essas iniciativas dialogavam ao mesmo tempo com duas audiências e com sentidos distintos ao mesmo tempo: era preciso demonstrar tanto para a sociedade quanto para a categoria profissional a possibilidade e necessidade de considerar as dimensões subjetivas da vida social.


Por que ter como alvo também a comunidade de profissionais da Psicologia? Por que neste e em outros temas foi preciso ajudar a própria profissão a chegar ao reconhecimento da multiplicidade de possibilidades de sua presença na sociedade. Aparentemente não estava claro para a categoria profissional que aquilo que era considerado óbvio entre profissionais de Psicologia, tinha grande valor no debate com a sociedade.

 

Banco Social de Serviços

 

Com a chegada de Lula à presidência, foi possível perceber que se abririam novas frentes de trabalho na operação das políticas públicas. (Lula chegava com a lógica de fazer valer a constituição e as políticas públicas que estavam previstas na carta magna). Para demonstrar para o governo, para a sociedade e para a própria Psicologia como eram extensas as possibilidade de contribuição nesse processo, foi criado o Banco Social de Serviços.

 

Esta foi uma das iniciativas mais ousadas que realizamos em todos esses anos, já que infringíamos regras consagradas no nosso campo, como lançar mão do trabalho voluntário das psicólogas. Nós identificamos temas e procuramos organismos públicos em que houvesse algum interesse em contar com a colaboração de profissionais psi e criamos projetos com foco nesses temas.

 

Convidávamos profissionais que se dispusessem a oferecer algumas horas semanais para participar dos projetos, promovíamos debate e formação, atuávamos coletivamente e produzíamos textos que foram publicados em cadernos imperdíveis.

 

Para atentar somente a uma das consequências do Banco Social, vale contar que na construção do SUAS (Sistema Único de Assistência Social) a definição da equipe básica incluiu profissionais de Psicologia. Isso, sem a ocorrência de qualquer tipo de pressão de gabinete ou esforço dirigido pela profissão nessa direção.

 

Essa inclusão na equipe básica do SUAS resultou na contratação de algo em torno de trinta mil profissionais ao longo de dois ou três anos. Numa profissão que contava à época com pouco mais de duzentos e cinquenta mil profissionais registrados, esses números são impressionantes.

 

CREPOP

 

Antes mesmo de chegar à construção do Banco Social, já acontecia um esforço organizado para amplificar o debate sobre a presença da Psicologia nas políticas públicas. Por meio da realização dos seminários nacionais de políticas públicas, que aconteceram nos eventos que reuniam profissionais e estudantes de Psicologia foram os desencadeados esses debates.

 

Mas, depois da realização do Banco Social de Serviços, compreendemos que seria indispensável estabelecer um foco de debate permanente e difusão de orientação para as práticas profissionais nas diferentes políticas públicas.

 

Para isso, foi criado o CREPOP (Centro de Referência Técnica em Psicologia e Políticas Públicas). 

 

No método de funcionamento do CREPOP, as definições acerca de alguma prática seriam sempre colhidas junto a profissionais com larga experiência no tema, mas atendendo a um procedimento metodológico capaz de dar substância e uniformidade à presença da profissão nos diferentes modos de intervenção do aparelho de estado.

 

Tínhamos dito que é preciso método para combater a desigualdade, podemos repetir que é preciso método para expandir uma profissão. E o CREPOP é uma das ferramentas metodológicas mais importantes que a Psicologia brasileira criou. Mesmo não sendo um produtor de regulamentações, o CREPOP se transformou num produtor de acordos sobre o que profissionais da Psicologia fazem (quando temas são escolhidos para desenvolvimento) e como fazem.

 

As referências técnicas são produzidas em um processo que inclui reconhecer e organizar as práticas presentes em cada área de atuação, expor isso de forma organizada, propor dimensões para uma política pública. Além disso, agregam força a essas práticas por serem emanadas como orientação oriunda da autarquia.

 

A profissão viveu um crescimento com o estabelecimento desses direcionamentos, incorporando como coisas próprias da profissão práticas antes pouco conhecidas, não reconhecidas ou até mesmo desconhecidas. A cada publicação do CREPOP, a Psicologia se firma em uma área de atuação, encontra resultados organizadores e expande seus serviços à sociedade.

 

Para uma profissão que antes se definia como tendo três áreas de atuação, crescer para várias dezenas de alternativas, houve um ganho inegável. Que segue acontecendo e fazendo crescer a contribuição da Psicologia para a vida social.


* Resumo do episódio 3 da série Brasil Psi!



 

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