Sejamos realistas, exijamos o impossível! Essa frase, escrita nos muros, marcou uma época de expectativas utópicas em 68. Ela carregava ousadia! Uma ousadia que resultava da constatação da impossibilidade de manter a vida humana no processo de destruição da natureza e das relações humanas que se considerava em curso naquele momento.
De algum modo, foi esse tipo de ousadia que marcou a construção das iniciativas que marcaram a virada da Psicologia brasileira na virada do século. Iniciativas cujos objetivos foram tidos como impossíveis para muitos dos nossos interlocutores naquele momento. Porém, iniciativas que nos pareciam inescapáveis e inadiáveis, foram o motor e a base para a ousadia que as marcaram.
Trabalhar pelo fim da desigualdade social no Brasil tinha um caráter utópico, com gosto de impossibilidade. Mas não havia alternativa, o governo federal estava entregando as riquezas nacionais, o projeto de privatização e de supremacia do mercado andava a pleno vapor, o desmonte das instituições reguladoras (inclusive das profissões) era operado a cada dia por medida provisória…
Não havia alternativa, pois tínhamos governantes que carregavam promessas de mudança e se colocavam como o ápice do processo de democratização do país, ao mesmo tempo em que manietavam a imprensa e desmanchavam os espaços de democracia, além de se submeter de joelhos aos ditames da chamada globalização.
Havia algumas medidas que pareciam ter caráter popular, mas todas elas tinham um caráter reduzido e precário. Betinho teve que deixar os espaços de diálogo com FHC ao constatar que estava sendo usado para dar uma fachada de interesse popular ao governo que se entregava aos interesses do mercado.
Vale dizer, a cada momento no processo de construção do projeto do Compromisso Social, tivemos que calibrar nossas relações com a oficialidade segundo as possibilidades de luta contra a desigualdade. Nos seis primeiros anos desse projeto tínhamos um governo fortemente sustentado no Congresso Nacional como adversário na luta contra a desigualdade.
Pois foi nesse contexto que tudo o que propusemos e realizamos foi enfeixado no combate à desigualdade social. O que exigiu grande ousadia.
De repente (esse foi sentimento) o combate à desigualdade social, que parecia algo impossível, ganhou gosto de possibilidade. Com o advento de um governo de recorte popular, essa ousadia precisou ganhar novos matizes, apontando para o alargamento do espaço da Psicologia, notadamente nas políticas públicas. No momento em que nosso discurso sobre compromisso social começou a ter um rebatimento no próprio governo, foi preciso reconfigurar o foco da ousadia, para aprofundar e alargar as possibilidades de combate à desigualdade social.
Uma iniciativa que materializou o projeto do compromisso social no âmbito da profissão consistiu no redesenho do Código de Ética, no início dos anos 2000. O código de ética vigente era de 1987, anterior a marcos importantes de conquistas de direitos, como, por exemplo, o Estatuto da Criança e do Adolescente. Além disso, as políticas implementadas no processo de democratização da sociedade abriram espaços de atuação da Psicologia, orientada por novas diretrizes, transformando a atuação profissional.
Peça central de referência para a profissão, era preciso que o código de ética pudesse se colocar no nível dos novos desafios e dos avanços que a profissão ia galgando. Aspectos relativos ao atendimento de populações em contextos diversos, como, por exemplo, a população em situação de rua, uso de tecnologias de informação no exercício profissional, reconhecimento da condição de pessoas outrora consideradas tuteladas como sujeito de direitos, o trabalho em equipes multiprofissionais, dentre outros, mobilizavam a categoria para a atualização de parâmetros éticos da profissão.
A atualização do Código de Ética foi uma decisão do Congresso Nacional da Psicologia. Além de ser um reflexo do processo de democratização da autarquia e da profissão, mais uma vez a marca desse redesenho foi a ousadia. Ousadia no enfrentamento de temas importantes para a profissão e ousadia no método adotado para sua elaboração.
O código foi construído a partir de um amplo debate com a categoria e com a sociedade. A ideia é que o novo código propiciasse a discussão sobre os parâmetros éticos que orientam a prática profissional. Foram realizados muitos eventos, que culminaram em fóruns regionais estaduais e em um Fórum Nacional de Ética. Cada fórum regional recolhia e deliberava sobre propostas e elegia representantes para a etapa seguinte.
De posse das propostas acumuladas em mais de um ano de debate, um grupo de especialistas sistematizou um texto final, que foi ainda submetido a consulta pública antes de sua publicação final. Interessante destacar que a consulta pública possibilitou uma grande e importante polêmica em torno das questões sobre o sigilo profissional, na medida em que se identificavam tensões entre o direito individual relativo à privacidade e intimidade e o compromisso com a defesa de direitos coletivos. Esse era o caso de situações de violações de direitos humanos, preceito maior dos novos parâmetros afirmados por diversos mecanismos.
A construção e enfrentamento desse debate ocorreu na esfera pública, por meio de muitos eventos, para os quais foi buscada a contribuição de filósofos, de operadores do direito e tantos outros. Ao final o novo código se apresentou como referência para a profissão e também para a sociedade, na medida em que afirma aos usuários dos serviços de psicologia os princípios éticos que posicionam a psicologia na sociedade brasileira.
Mas, antes mesmo de conviver com um governo democrático popular, essa ousadia se expandiu para a inclusão, no campo de visão da Psicologia, das lutas dos movimentos sociais e do reconhecimento da importância dos atores sociais que lhes dão sustentação. Desde a primeira hora da definição do projeto do compromisso social esse reconhecimento e apoio ficaram estabelecidos como princípio. Estava claro que era preciso demonstrar isso para além da emissão das notas de apoio.
Foi assim que a diretoria do CFP caminhou junto com o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra na entrada em Brasília, quando da sua grande marcha ao encontro dos petroleiros, na intersecção do Eixo Sul com o Eixo Monumental, no coração da cidade de Brasília, ainda no século passado. Não somente caminhamos com o MST, mas tivemos o cuidado de divulgar amplamente essa participação no meio da Psicologia.
Na leitura que fazíamos, o MST era um exemplo da importância de nos organizarmos para enfrentar as situações que pudessem parecer as mais difíceis. Na Psicologia, vivíamos dispersos. Dispersos nos diferentes tipos de entidades, dispersos nos diferentes tipos de práticas, dispersos nos diferentes tipos de iniciativas. Radicalizar o chamamento iniciado ainda nos anos oitenta do século passado, no sentido de ir juntando os muitos mundos em que estávamos divididos, pareceu ser condição para que profissão e ciência pudessem ter força para superar seus desafios.
Outro exemplo de organização, agora em dimensão planetária, consistiu no Fórum Social Mundial. Muitos de nós ainda vão levar muito tempo para compreender a importância e grandiosidade daquela iniciativa. Especialmente se considerarmos que foi baseada em uma única capital de estado brasileiro. De fato, coisas que parecem corriqueiras hoje, à época eram muito difíceis de serem aceitas. Tivemos que nos arriscar às glosas do Tribunal de Contas da União. Tivemos que nos arriscar às respostas de atores conservadores muito fortes no âmbito da Psicologia. Mas, como estava na linha do combate à desigualdade social e correspondia a projetos de organização e fortalecimento do tecido social, nos colocamos em campo para construir, divulgar e participar desde o primeiro FSM.
Daí em diante tivemos muita interação com lutas sociais, dentre as quais uma das que chamaram mais atenção foi o apoio à luta dos povos indígenas.
O movimento cuja luta mais profundamente envolveu profissionais e entidades de Psicologia foi a Luta Antimanicomial. Vale notar que se trata de um excelente exemplo de ponto de intersecção entre política e prática profissional; o combate aos manicômios conjugou muitas perspectivas importantes. Alguns exemplos: 1) o reconhecimento da ineficácia dessas instituições para produção de saúde mental; 2) a identificação das inaceitáveis agressões à cidadania pelo maltrato dos usuário; 3) a repulsa pelo recorte perverso das práticas desenvolvidas nos manicômios, que chegaram a ter caráter homicida, além de todo tipo de humilhação e subjugação das pessoa que ali ingressam…
Do ponto de vista da disputa da hegemonia no âmbito social houve uma luta que ganhou enorme espaço na Psicologia. Trata-se do combate à manipulação das subjetividades pelos meios de comunicação. Ocorre que profissionais da Psicologia desenvolvem uma escuta muito diferenciada na sua formação e exercício profissional. Isso facilita que reconheçam táticas ardilosas na forma de apresentar informações que denotem intencionalidades e pretendam apontar conteúdos por vezes inversos àqueles explicitamente expressos.
Um exemplo concreto. Em 2005, na realização do Seminário Nacional Mídia e Subjetividade, foi republicado um livreto escrito por Perseu Abramo com o nome Padrões de manipulação da grande imprensa. Essa obra foi distribuída como parte do material preparatório para o seminário. Ficou claro que aquilo que para os jornalistas era algo novo, para profissionais da Psicologia parecia algo comezinho, já que tão facilmente acessível com o uso das ferramentas da profissão.
Era preciso colocar esse saber a serviço do debate social e isso aconteceu de muitas formas, desde a contribuição aos debates do Fórum Nacional pela Democratização dos Meios de Comunicação, até o apoio à Campanha Quem financia a baixaria é contra a cidadania. Nessa Campanha, profissionais da Psicologia foram chamados a contribuir com a análise de peças publicitárias para identificação do que chamamos de incentivo a comportamentos degradantes e violadores de direitos.
Uma iniciativa de grande impacto consistiu na participação das entidades da Psicologia na construção da Conferência Nacional de Comunicação, em 2009. Essa participação foi algo definitivo, tanto para sua convocação quanto para sua realização. Havia um coletivo nacional das entidades da Psicologia que trabalhava semanalmente na organização da convenção.
Note-se que participar de um movimento destinado a enfrentar a manipulação das informações por parte dos organismos de imprensa foi mais uma ousadia. Hoje todo mundo bate na Globo, mas no passado era sempre algo ousado apontar suas manipulações e negociatas.
Também foi ousado promover a realização dos Congressos Norte-Nordeste da Psicologia, da construção da Biblioteca Virtual e a criação da ABEP. Vale a pena ressaltar que estas três iniciativas, para além de promover o combate ao colonialismo cultural, estabeleciam um combate contra um tipo muito específico de desigualdade no âmbito da Psicologia.
No caso dos congressos realizados nas regiões norte e nordeste do país, a ousadia consistiu em afirmar o reconhecimento de que a Psicologia é uma profissão e uma comunidade de caráter nacional. Em meio às teses da produção e investimento em centros de excelência (que à época era a tese central do governo federal para promover o empobrecimento geral das universidades no Brasil), convocar a Psicologia para fora do eixo Rio-São Paulo foi algo prodigioso.
Infelizmente esses congressos não continuaram a acontecer, mas estávamos no caminho de trazer para dentro da Psicologia o debate, por exemplo, sobre a região do semiárido. Trata-se de um território que cobre uma enorme porção do território nacional e uma quinta parte de todos os municípios brasileiros. Trata-se de uma população que consegue viver em grande parte desse território com fartura, apesar do acesso limitado a um recurso vital.
Nós já tínhamos claro que essa população, seguidamente retratada como indigente, vai ter papel fundamental num futuro próximo quando a escassez de água dominar cada vez maiores parcelas do território nacional e mundial. De fato, estava em incubação um projeto que chamávamos Psicologia e os biomas brasileiros, que não chegou a ser assumido pelas entidades, embora debatido com muitas lideranças da área.
Transferir o foco da Psicologia para as diferentes regiões e realidades significava bem mais do que ampliar o turismo cultural. Esses congressos precisam voltar a acontecer. E não somente os congressos, mas incursões nas realidades vividas nessas regiões, por exemplo por meio de jornadas e vivências que coloquem nossos pesquisadores, profissionais e estudantes em relação dialógica com esses contextos.
Essa preocupação com o conhecimento das regiões e realidades tão díspares no país tem também relação com a criação da ABEP. Essa entidade representou a pá de cal na lógica de que alguém no Rio ou em São Paulo define o que é ser profissional de Psicologia e o que precisa ser inserido na sua formação.
No projeto estabelecido para a ABEP, ela seria o canal para o diálogo da formação com o conjunto da Psicologia e com a sociedade. Tanto no sentido de trazer para a formação as exigências que a vida social tenha, como no caso do programa de inserção do SUS no temário dos cursos de graduação em 2006, como também no sentido de abrir a porta para expressão das diferenças regionais e definição de adequação da formação profissional para diferentes contextos sociais.
A Biblioteca Virtual da Psicologia, nos moldes em que foi construída, pode ser considerada o desafio mais ousado no combate à desigualdade interna à Psicologia. Pode parecer incrível, mas anos atrás, para fazer um levantamento amplo sobre um assunto qualquer da prática ou da pesquisa em Psicologia, era preciso viajar principalmente a São Paulo. A Biblioteca do Instituto de Psicologia da USP era a biblioteca mais completa na área da Psicologia.
Não importava se a pergunta era sobre um caso específico de atendimento clínico ou sobre providências a tomar no caso de um cataclisma, não havia lugares onde profissionais pudessem obter informações, para além daquilo que haviam estudado na graduação ou junto a grupos de formação, neste caso sempre limitados à linha de pensamento adotada por um determinado coletivo.
É impressionante a disposição que profissionais de Psicologia têm para buscar aprimoramento da sua formação. E é enorme o número de profissionais que encontram essa formação em cursos que são organizados, quase sempre localmente, com foco específico em determinadas práticas ou populações. Muito frequentemente é nesses cursos e grupos de formação que necessidades de aprimoramento profissional são atendidas. É importante ressaltar que graças a esses coletivos, muita qualidade foi agregada ao fazer de profissionais da Psicologia.
Há um lindo conjunto de cursos de especialização e formação em todo o país. Organizações com trabalhos de riqueza impressionante, apesar de pouco conhecidos e pouco reconhecidos nos eixos centrais da Psicologia nacional. Dispersos, também, como era usual na profissão, embora tenham começado a ser identificados no processo de credenciamento realizado pela ABEP a pedido da autarquia.
O problema é que a expansão da formação de novos profissionais e dos serviços de Psicologia para todo país tornou virtualmente impossível oferecer acesso físico aos materiais para estudo e aprimoramento profissional. Isso agravou as dificuldades de acesso de profissionais a materiais que pudessem subsidiar suas práticas.
A Biblioteca Virtual surgiu como uma ferramenta de trabalho que oferecia possibilidade de pesquisa e aprimoramento, consultas sobre casos específicos e identificação de interlocutores em diferentes temas e práticas. Além de apoiar a delimitação de uma comunidade nacional da Psicologia, a Biblioteca consistia numa via de mão dupla para o acesso ao conhecimento. Por um lado, permitia o acesso ao material sistematizado produzido no país. Por outro lado, profissionais da academia poderiam reconhecer interesses e necessidades do campo de atuação.
Como a sua construção consistiu em produção aclimatada para a Psicologia brasileira, a Biblioteca oferecia informação sobre periódicos que não conseguiram manter sua regularidade ou mesmo aqueles que foram extintos. E mais, como produção financiada pela autarquia, ela trazia esse recorte que as demais bibliotecas não possuem: há bases de dados com a produção de profissionais em cursos de especialização, produção de estudantes de graduação, produção de profissionais que estão em campo inventando a profissão.
Assim como os Congressos Norte-Nordeste, a Biblioteca precisa ser resgatada, atualizada e dinamizada para poder atender à demanda por aprimoramento de um sem número de profissionais que não terão acesso a materiais importantes sem ela.
Já no final do período coberto por este projeto sobre a virada do século, mas ainda decorrente do Banco Social de Serviços, nos debruçamos sobre a Psicologia das Emergências e Desastres. Foi um exercício novo, porque consistiu no ingresso em bloco da profissão em um tema que à época contava escassos profissionais no país. No prazo de seis anos foram realizados eventos nacionais, troca de informação com países mais experientes no tema, tomadas decisões de APAF sobre esse tema, foram definidos aspectos conceituais e de procedimentos para atuação da Psicologia nesse tema. Depois disso tudo, chegamos a estabelecer as bases para a construção de um plano nacional de contingência da Psicologia para o enfrentamento de desastres. Infelizmente essa iniciativa foi descontinuada, mas teria colocado a profissão em outro patamar de relação com a sociedade nesta pandemia.
Enfim, na virada do século vinte e um a Psicologia exercitou aquela frase de 68. Com ousadia, foi realista e buscou construir o que parecia impossível.
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