O problema, parceiro, é o viés. Essa coisinha chamada ‘viés’
é a grande desgraça do ‘Braziliam Journalism’. A manchete é “Veja mitos e
verdades no debate dos agrotóxicos” e o ‘olho’ da matéria é: “Discussão do
projeto que facilita a liberação dos produtos na agricultura acirrou os ânimos
de ambientalistas e ruralistas”.
O protocolo das redações pode inocentar os missivistas: quem
assina a matéria não é quem faz o ‘olho’ e a manchete, por isso os repórteres
não podem ser responsabilizados pelo escopo explicitamente enviesado da matéria.
Por que enviesado? Porque protege o governo Temer e sua tentativa canalha de
enfiar agrotóxicos goela abaixo da população brasileira.
Através de um pressuposto malicioso (o de que o agrotóxico é
um mal necessário) e de ‘zonas de silêncio’ estrategicamente selecionadas (as
de que o mundo do cultivo é exclusividade dos grandes produtores), a matéria
instala uma falsa discussão ‘objetiva’ e técnica, na linha obsoleta da dicção
que busca ‘neutralidade’.
Nota técnica da linguística: nada na língua é neutro. Essa
falácia ainda impera na maioria das redações falimentares brasileiras. Eles
leram a teoria da comunicação de Jakobson (publicada em 1962) e ficaram nisso.
Ignoraram a imensidão que se produziu depois desta obra (e que a superou) na
área dos estudos da linguagem. Óbvio que, para o jornalismo brasileiro e no que
diz respeito às teorias da linguagem, o tempo parou nos anos 60. É o jornalismo
retrô.
A matéria tem algumas qualidades. Mas os abutres editoriais,
dominados pelos interesses da publicidade e das próprias fobias e vícios a
assassinaram e a tornaram um argumento para a bancada ruralista desfilar sua sede
de vingança e sadismo econômico em futuro próximo.
Não será de se admirar se um deputado ruralista empunhar a
reportagem quando a matéria da Lei dos Agrotóxicos for finalmente votada no
Congresso, tão adiada que foi, justamente, por não contar com a habitual maioria
chantagista alimentada pelos repasses suculentos de Temer e Cia. O Congresso
anda indócil em tempos de eleição e o preço individual por deputado aumentou.
A maior canalhice, no entanto, é dar um ar de ‘normalidade’
técnica ao debate e simplesmente ignorar os interesses econômicos e
corporativistas que estão em jogo na discussão que ora se desenrola no
Congresso. A matéria também não traz dados do impacto do uso dos agrotóxicos em
populações ao longo da história. Dados como incidência de doenças em
percentuais, taxas de mortalidade, impacto nutricional e ‘vida útil’ do trabalhador
rural são olimpicamente ignorados.
O ‘Distúrbio de Colapso das Colônias’, estudo sério e
consagrado, pesquisado por universidades americanas e pelas próprias agências
de pesquisa brasileiras – que nada mais é que o desaparecimento das abelhas no
hemisfério norte – é tratado como mito. Se jornalismo é isso, por favor me
digam o que ele não é.
A matéria propõe 17 perguntas. Elas falam por si. Promovem a
falsa objetividade técnica do tema e ainda conseguem a proeza se perderem no
final, invadindo o campo arrasado e podre da politização barata:
Agrotóxico faz mal?
É possível não usá-lo? Veja o que é verdade e mentira no debate
1. Agrotóxico é a
mesma coisa que defensivo agrícola e pesticida?
2. Quais são os
tipos de agrotóxicos? O que eles fazem?
4. As moléculas dos
agrotóxicos são biodegradáveis?
5. Pesticidas estão
matando as abelhas e outros insetos polinizadores?
6. O que acontece
com as pragas após o uso constante das substâncias?
7. Há mesmo vantagem
dos agrotóxicos mais modernos em relação aos antigos?
8. O uso combinado
com transgênicos diminui a quantidade de defensivos na lavoura e a resistência
das pragas?
9. Supondo que o
Brasil ou o mundo parasse de usar agrotóxicos, o que aconteceria ao ambiente?
10. Quais são os
modelos de cultivo que menos precisam de agrotóxicos?
11. Qual seria o
impacto econômico da proibição dos agrotóxicos?
12. É possível ter o
mesmo efeito de proteção contra pragas com menos aplicações dos produtos?
13. Quais são as
culturas que mais usam agrotóxicos no país?
14. Quais os efeitos
crônicos para a saúde?
15. Alimentos
orgânicos são mais seguros?
16. Quais os efeitos
agudos dos agrotóxicos no corpo?
17. Agrotóxicos
podem causar a morte?
Primeiro, o conjunto
de perguntas trata o leitor como um verdadeiro idiota. Essa é a linha editorial
dos grandes jornais, para quem não sabe: ‘o leitor é idiota, tem que simplificar
e facilitar ao máximo para ele’.
Para todas essas
perguntas, as respostas são protocolares e ficam em cima do muro. Eles
procuraram os pesquisadores certos (os de linhagem tucana), aqueles que têm
compromisso apenas com a própria carreira.
É uma matéria para ‘limpar
a barra’ do uso dos agrotóxicos. Não se pode olhar para ela (para o texto, para
o tom, para o regime de sentidos), apenas com um olhar primitivo de leitor
destituído de senso crítico.
A linguagem, caros
amigos leitores, é muito mais complexa do que imagina a vã filosofia. Ela
reverbera, ela estala, ela erode, ela chama, ela seduz, ela causa repulsa, ela,
enfim, é mais que o sisteminha de comunicação obsoleto do linguista russo Roman
Jakobson, com todo respeito a sua obra e aos limites epistemológicos de seu
tempo histórico.
O mais canalha, no
entanto, desta matéria claramente lotada de interesses econômicos e
deliberadamente providenciada por um veículo que pretende aumentar seu
faturamento junto a grandes produtores rurais e anunciantes indiretamente beneficiados
por esse ‘presente editorial’, é o apagamento do ‘pequeno produtor rural’.
O ‘pequeno produtor
rural’ nem aparece na matéria, quanto mais sua lógica e sua importância econômica
e social. Mais grave: o ‘pequeno produtor rural’ é, justamente, a solução para questão
do uso excessivo de agrotóxicos mundo afora. Qualquer pesquisador que não seja
tucano (preguiçoso) sabe disso.
As plantações em
menor escala possibilitam a personalização do cultivo e dispensam as doses
cavalares de agrotóxicos. Mais do que isso, o pequeno agricultor resolve uma
outra série de graves problemas sociais, como o êxodo rural e a restauração da
cultura do homem do campo, que pode, assim, de posse de uma pequena área de
cultivo, construir um entorno social mais produtivo solidário e, mais
importante: muito mais eficiente economicamente, num processo que já nasce
distribuindo renda.
O pequeno produtor é
um anteparo para a concentração de renda no campo. Combate o trabalho escravo,
o abuso, a fraude. Capilariza a receita destinada ao consumo de produtos mais
saudáveis e beneficiados no escopo de um processo mais humanizado.
A matéria da Folha
de S. Paulo ignora completamente essa dimensão do argumento que está implícito
de maneira consagrada na discussão sobre o uso dos agrotóxicos, no Brasil (em
um Brasil que parece não existir mais) e no mundo.
Lamento dizer,
contudo, que tratar o leitor – e o próprio repórter que acaba por fazer uma
matéria que nem mesmo sabe o que ‘é’ nem o que ‘significa’ – como idiota é uma
prática cada vez mais perigosa para a grande imprensa. Esse tempo já se foi. Depois
da internet, fica um pouco mais difícil oferecer uma ração jornalística de tão baixa
qualidade.
O jornalismo
brasileiro ‘clássico’, se não quiser ser devorado pelas mídias digitais, precisa
fazer uma autocrítica e um recall técnico. Eles até tentam – que eu sei –
contratando uma consultoria aqui, outra ali. Mas a palavra ‘inócuo’ e até
insuficiente para definir este protocolo de reciclagem profissional.
Não se pode ter medo
de se elevar o nível do que quer que seja. Da política, da agricultura, da
educação ou do jornalismo. Enquanto os jornais tradicionais insistirem em
nivelar sua atuação por baixo, a agonia do segmento vai continuar, com
demissões, sucateamento, mordaça e editorialismos canalhas.
Nunca é tarde, no
entanto, para se tentar dar a volta por cima.
Nenhum comentário:
Postar um comentário