O grotesco não raro é seguido por repulsa e fascínio. François
Rabelais consagrou os sentidos do grotesco com seus romances cômicos Pantagruel,
de 1532 e Gargântua, de 1534. A escatologia é engrenagem importante na dicção
de Rabelais e ele representa um divisor de águas para os estudos do humor.
O filósofo e ensaísta russo Mikhail Bakhtin fez uma análise
clássica da obra do padre e escritor francês, traçando paralelos importantes
entre o imaginário rabelaisiano e a cultura popular na idade média. Rabelais é fundamental
para se entender a civilização e suas pulsões suicidas de aniquilação do
sentido, bem como as cifras de sobrevivência e resistência subscritas no relato
do absurdo.
Lembrei de Rabelais ao ver a cena em que Cármen Lúcia e
Raquel Dodge cantam a canção popular “Não Deixe o Samba Morrer” ao lado de
Alcione em uma das antessalas do STF. É assaz emblemático, seja como um estudo de
caso, seja para o país de maneira geral e política.
Destaque-se que, enquanto as autoridades da república
cantavam desajeitadamente um dos refrões mais populares do samba, sete
manifestantes brasileiros agonizavam próximos ao STF, nos seus mais de 21 dias em greve de fome pelo julgamento da ação de constitucionalidade da prisão em
segunda instância – que poderia libertar Lula.
Ação esta, diga-se de passagem, postergada pela mesma
ministra que ali cantava quase que em estado de êxtase “Não Deixe o Samba Morrer”.
O grotesco rabelaisiano se aplica a esta cena, a esta conjunção
de elementos sobrepostos, contrários e absurdos. Não apenas pelo grotesco, mas
pelo que a cena deixa vazar através da letra da canção entoada por um poder judiciário
apodrecido.
“Não Deixe o Samba Morrer” não é de autoria de Alcione.
Trata-se de um samba composto em 1974 por dois modestos compositores baianos
radicados em São Paulo, Edson Gomes da Conceição e Aloísio Silva.
A letra é bem apropriada para o nosso momento político,
momento este que começa a desembocar em um possível renascimento da democracia,
através da resiliência eleitoral do maior líder popular do país.
Tem tudo a ver com ‘samba’ e com ‘deixar o samba morrer’. O
samba, bem dito, como expressão máxima da cultura popular brasileira está
fortemente conectado à ideia de democracia. Samba, por assim dizer, é quase sinônimo
de democracia, no poder e na energia social que ele põe em movimento.
O samba é negro, o samba é pobre, o samba é trabalhador. O
samba sofre, o samba grita, o samba morre na sarjeta e ressuscita no morro. O
sambista é o mais brasileiro dos brasileiros. Ele dá sua vida pelo samba, ele
desnuda o peito na avenida, ele explode de alegria para depois agonizar no
sistema escravocrata que lhe rende alguns trocados – para, então, voltar ao
samba e afogar suas mágoas em meio a vis dinheiros e uma caixinha de fósforo.
Este samba nada tem de conexão com aquele desfile imóvel e
quadrado, tão improvável quanto intragável, encenado em plena casa máxima do
poder judiciário. Se foi marketing para humanizar a confraria preposta judicial
do golpe, devo dizer que fracassou. Mais que isso: o sentido possível ali foi o
exato contrário.
Tudo é tão inacreditável e, a rigor, pitoresco, que não é
trivial traçar uma temática adequada para imortalizar o que deveria ser para
sempre esquecido. Há relatos, por exemplo, de que Alcione tem várias pendências
na justiça por calote a músicos e há um registro concreto de que ela foi
instada pela justiça a pagar indenização ao filho do Cartola por injúria. São
muitas referências cruzadas da insustentável pobreza do ser.
Elejo, no entanto, como caminho temático, a via da redenção
e da revelação. Quem enunciou aquele samba através daquelas bocas flácidas,
aboletadas no monumento ao acovardamento – que é o STF –, foi o povo. Foi o
povo e foi Lula, as verdadeiras instâncias populares, investidas de ritmo, cadência
e verdade.
A letra da dupla Edson Gomes da Conceição e Aloísio Silva é
a expressão do nosso impasse político-eleitoral, provocado pelos maus
perdedores que insistem em levar o pandeiro e o tamborim para casa.
O refrão apresenta um clamor de emergência: o samba corre o
risco de morrer. Ele se mistura ao povo (o morro é o povo, que ‘é feito de
samba’) e se condensa em um gesto amplo, materializado no verbo ‘sambar’.
O clamor do eu cancional, portanto, pede para que não se interrompa
a ação, a ação que é ‘sambar’, pois ela é definidora da existência – ‘sambar’,
nesse sentido, é sinônimo de ‘viver’ e, tal é a força desta relação de
sinonímia, que a ‘morte’ invade o território da ação como antissujeito:
Não deixe o samba morrer
Não deixe o samba acabar
O morro foi feito de samba
De samba pra gente sambar
Não deixe o samba acabar
O morro foi feito de samba
De samba pra gente sambar
A partir desta ‘mola’ semiótica singular de um samba que
começa inusitadamente pelo seu próprio clímax (o refrão), a extensão narrativa da
canção se projeta no relato pessoal-passional de um sambista-vivente que está pressionado
pelo tempo: ele envelhece e antecipa seu envelhecimento lamentando sua futura
ausência na ‘avenida’:
Quando eu não puder
Pisar mais na avenida
Quando as minhas pernas
Não puderem aguentar
Pisar mais na avenida
Quando as minhas pernas
Não puderem aguentar
As pernas ainda jovens que sustentam e dão mobilidade ao eu
cancional tomado pela dor e a alegria de pertencer ao universo do samba (que
necessita tanto da voz quanto das pernas e mesmo da jovialidade para continuar
a sambar) são projetadas em um futuro certo que lhes trará fraqueza e
paralisia. A senha semiótica aqui é o tempo como toxina do movimento passional
do samba. A letra prossegue:
Levar meu corpo
Junto com meu samba
O meu anel de bamba
Entrego a quem mereça usar
O corpo se funde ao samba e ocorre o primeiro gesto de
transmutação desse eu cancional: ele quer-vai passar o bastão (‘o meu anel de
bamba entrego a quem mereça usar’). O sambista anuncia que vai continuar sambando,
mas através de outro corpo, pois o seu corpo não aguenta mais.
O rito de passagem e de transmutação é representado pelo ‘anel
de bamba’, um elemento concreto que dá legitimidade às práticas sociais de
co-representação. O anel vai significar a presença do velho sambista no novo
sambista que, por sua vez, tem que ‘merecer’ a deferência. A letra avança:
Eu vou ficar
No meio do povo espiando
A Mangueira perdendo ou ganhando
Mais um carnaval
No meio do povo espiando
A Mangueira perdendo ou ganhando
Mais um carnaval
O velho sambista abdica do protagonismo e se junta ao povo,
tomando uma posição de mero observador ao espetáculo do samba. Faz isso restituindo
a si mesmo um processo de rotina e de normalidade, em que não importa perder ou ganhar, mas sim ver passar o carnaval. Há ares de despedida magnânima por parte
desse eu que, experimentou um dia a força do samba como elemento irradiador de
sua energia vital.
Há uma disjunção, que não é amorosa, mas é visceral: o samba
deixa um corpo para se tornar um conceito e um vetor de contemplação.
Antes de me despedir
Deixo ao sambista mais novo
O meu pedido final
Deixo ao sambista mais novo
O meu pedido final
O tom de despedida dramática é tão forte que ela se
materializa lexicalmente (‘antes de me despedir’), não sem introduzir um último
desejo deste sambista que já viveu muito diante de seu alter ego jovial. A interpelação
é tão intensa que ele tem que repetir:
Antes de me despedir
Deixo ao sambista mais novo
O meu pedido final
Deixo ao sambista mais novo
O meu pedido final
Para, então, finalmente, retomar o refrão introdutório, mas
agora com a densidade avassaladora da história pessoal e humana de alguém que
entregou sua vida ao samba.
Não deixe o samba morrer
Não deixe o samba acabar
O morro foi feito de samba
De Samba, pra gente sambar
Não deixe o samba acabar
O morro foi feito de samba
De Samba, pra gente sambar
A canção tem uma segunda parte, mas a imensa força dela se
concentra neste conjunto aqui arrolado. O recado, por assim dizer, foi dado.
Torna-se, mesmo, mais forte, produzindo com a brevidade de uma dor derradeira que
atravessa um eu cancional tão complexo, pleno de emoções transversais,
projeções subjetivas sob o signo da ausência e fusões semânticas e conceituais.
O samba se transforma em povo que se transforma em espólio
que se transforma rito que se transforma em vida que segue.
Não há condições legais ou jurídicas de personagens como
Cármen Lúcia cantarem tal obra prima. Data vênia é preciso humanidade para
entoar esta letra.
Concluo o breve passeio semiótico por esta bela canção popular,
evocando um salto narrativo cinematográfico que se torna essencial para chegarmos a um termo.
No filme ‘As Aventuras de Pi’, de Ang Lee, o narrador conta
sua história a um escritor. A história, no limite do verossímil, equilibrava-se entre literalidades e metáforas, equilíbrio esse que caracteriza o grande
mecanismo discursivo responsável pela História com H maiúsculo.
Ao final da contação extremamente cativante porque mesmo
inverossímil (já que narra a história do convívio em um bote salva-vidas à
deriva habitado também por um tigre-de-bengala), o educado ouvinte-escritor formula uma
tese e questiona seu interlocutor: tais animais naufragados seriam apenas personagens
fantasísticos presentes na imaginação prodigiosa da mente narrativa daquele
indiano genial.
O ex-náufrago-narrador responde que não importa. E que
aquele efeito entre o verossímil e o inverossímil é o segredo linguístico que
torna possível acreditar em Deus.
O filme é belíssimo e enseja reflexões filosóficas com
extrema delicadeza.
Meu interesse em evocá-lo, no entanto, não tem nada a ver
com Deus. Tem a ver com política, com Brasil, com intepretação de texto e com
as delícias do imponderável.
Retomem a análise semiótica da canção. Relembrem dela por um segundo.
Pois bem.
O samba é a democracia, o sambista é o Lula e o ‘novo
sambista’ é um tal de Fernando.
* Assista ao vídeo sobre o episódio editado pelo documentarista Celso Maldos:
* Assista ao vídeo sobre o episódio editado pelo documentarista Celso Maldos:
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ResponderExcluirMeu camarada, você falou que o HERÓI Sérgio Moro está abandonado??
ResponderExcluirAbandonado está você........kkkk
Ninguém comenta seus posts.
LULA PRESIDIÁRIO !!!!!
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ExcluirMeu caro, você interpretou a cena brilhantemente bem, meus parabéns!!! Fiquei encantada com sua genialidade 👏👏👏👏👏
ResponderExcluirSensacional!!!
Conde sempre genial
ResponderExcluirCarmem Lúcia, o morcegos que troca momentaneamente as asas pretas pelas asas brancas de gala,quando sua risada histérica de vampiro comemora sem nenhuma autorização suas falcatruas e falta de decoro com a justiça. Usa o samba,expressão da mais alta nobreza popular e só consegue ser grotesca. Ao seu lado uma desenxabida Raquel que não consegue nem balançar as cadeiras por falta total de familiaridade com as expressões sinceras e naturais que são pressupostos para quem samba. Aff! NOJO
ResponderExcluirOlá Conde! Acompanho sua Live no 247 e gosto muito, suas ideias são bem afinadas as minhas. Mas este post é para lhe enviar uma música singela que compus em homenagem ao nosso presidente LULA. Gostaria que vc a interpretasse e divulgasse em seu programa se vc gostar. Inclusive pode mexer no arranjo etc... Concordo com vc que precisamos ver o mundo de modo mais poético, mais artístico, afinal a estética é a sensibilidade da razão, não é isso? Abraço! Caso não consiga enviar a letra da música no próximo post peço que me envie um contato para lhe enviar também o audio-báse da música. Até!
ResponderExcluirLULA GUERREIRO DO POVO BRASILEIRO
ResponderExcluirRitmo: baião
E (D A E) 2X (G A E)
E E7
VEIO DA FOME DO NORDESTE
MENINO CABRA DA PESTE
SUA SORTE A RECLAMAR.
DESCEU DE UM PAU-DE-ARARA
EM SÃO PAULO TERRA RARA
DE POBRE SE ARRUMAR
A
NO ABC SE FEZ GUERREIRO
GOVENOU BRASIL INTEIRO
E
PRO SEU POVO ALIMENTAR...
D A E ( A E ) E (D A E) 2X (G A E)
É Ê É LUUULA
E
FEZ O POBRE INDIGENTE
ESTUDAR E VIRAR GENTE
E ATÉ TER CASA PRA MORAR
A
SOFREU GOLPE E ATE PRISÃO
DOS MANDANTES DA NAÇÃO
E
QUE SÓ FIZERAM PIORAR...
D A E ( A E ) 2x
É Ê É LUUULA
G A C
ESSE POVO TÃO CARENTE QUER O LULA PRESIDENTE
E
PRA MODE DA VIDA MELHORAR. E (D A E) 2X (G A E) como na introducão
Áudio base da música ( não repare que é um rascunho). ok?
ResponderExcluirnão consegui enviar audio. Favor indicar um email ou oputro meio.
meu contato é westerleyas@yahoo.com.br. Aguardo!
Aproveito e sugiro visitar meu blog Artigos: ( Carta Aberta aos meus ídolos), (O Democídio de LULA), (Governo Temer: o Estado se volta contra a Sociedade), (A Música e o Desenvolvimento da Inteligência).
Adorei. Quando vi você no 247 achei que você era um amigo que tive aos 23 anos. Wladimir Weltman - ele era todo você. Mas isso já foi lá pelos idos da década de 80. Bjão
ResponderExcluirSensação que vocês PTistas passam é de estarem vivendo em um universo paralelo.
ResponderExcluirPra vocês o assalto que o PT cometeu na Petrobrás não existiu, foi alucinação da cabeça dos coxinhas.
Vocês são comédias!!!!!
lembra-me os brioches de Maria Antonieta ao povo faminto na queda da monarquia.
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