terça-feira, 31 de março de 2020

Não é o capitalismo que está em xeque, é a linguagem humana


Desculpa a minha sinceridade, mas a humanidade está completamente perdida.
O efeito colateral da linguagem é muito forte. Gerou os piores efeitos semânticos possíveis (e seus significantes desalentadores): 'deus', 'verdade', 'poder', 'masculino/feminino' etc.
Se a espécie humana fosse uma 'linha de automóveis', ter-se-ia o alerta: "volte ao revendedor para fazer o recall nas peças-significantes elencadas acima."
Há línguas indígenas que não têm marcas de passado e futuro, que não têm pronomes possessivos (o que gera uma experiência cognitiva mais conectada com o presente e com o outro).
A língua urbana gera a catástrofe cíclica da nossa condição fitossanitária, física e mental.
Somada à língua digital, o estilhaçamento semântico se torna letal.

Há inclusive, a geração espontânea da preguiça extrema. O que mais ouço nos bastidores do mundo do jornalismo é: "esse texto está difícil demais; simplifica".
Eu sempre ignorei todos os pedidos a mim dirigidos, inclusive com requintes de crueldade, adicionando palavras hostis ao mundinho bem comportado dos cativeiros hegemônico e alternativo.
Se se oferece textos facilitados, tem-se um leitor 'facilitado', infantilizado, tutelado.
É o leitor médio da cena, não só da Folha de S. Paulo e do Estadão, mas de todo o espectro de notícia que circula pela redes.
O leitor mais competente é o das redes sociais, por estranho que possa parecer essa constatação. A interpretação de um meme exige mais que a codificação de uma coluna de jornal - porque o meme lida com o grau máximo de intertextualidade.
Esse vírus que se alastra e nos confina é o vírus do poder e do dinheiro. Sua letalidade não é apenas biológica, é social (simbólica).
Talvez, ele anuncie a necessidade de restaurarmos não o sistema político e/ou econômico. Talvez, ele seja o gatilho para a restauração da própria linguagem humana, para novas escolas de interpretação e gerenciamento de sentido.
O legado intelectual civilizatório apodreceu vertiginosamente - me parece - com o advento das redes sociais. As redes instauram a realidade de um pensamento coletivo real, acenando para um novo patamar de produção científica e de significação da própria ciência.
Os céticos de plantão desempenharão seus papéis de sempre, mantenedores convictos das engrenagens clássicas de poder e hierarquia.
Eles fazem parte da pandemia histórica e atávica de covardia. Eu até prefiro usar palavras hostis à semântica infantilizada deles para que eles não me entendam mesmo - e para que eu não tenha o trabalho de explicar.
Fato é que períodos de quarentena são tóxicos para a covardia dos institucionalistas.
Em quarentena não sobra muito espaço ou tempo para não se pensar. E 3 bilhões de pessoas pensando ao mesmo tempo é algo inédito para a humanidade. Pode ser até perigoso.
Eu tenho meus níveis de ceticismo também. Não acho que a humanidade vai "tomar jeito" ou se dar conta de que o capitalismo é a manutenção da morte.
Deposito minhas fichas na língua. Seres humanos são humanos porque dispõem de uma língua humana. Se essa língua sofrer uma leve mudança em sua 'formatação' domesticada pelo poder econômico e político - é assim sua estrutura como nos mostrou o linguista Michel Pêcheux - teremos uma nova realidade na dimensão significante da atividade linguageira.
Bolsonaro e Trump, caras pálidas, já são um indício de que algo está por acontecer na dimensão da linguagem humana. Eles representam o colapso do enunciado, a morte do sentido, o simulacro medonho da racionalidade.
Eles são sintomas históricos.
Antes de o vírus chegar, a linguagem já vinha se transformando aceleradamente. Agora, esse processo foi deflagrado de maneira explosiva.

Um comentário:

  1. Hora de reescrever, melhor escrever novos conceitos. O mundo que conheciamos acabou, uma nova linguagem precisa ser construida. Começamos por onde? Pelo espelho.

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