O fracasso monumental e vexatório de Bolsonaro fez o favor
de antecipar a disputa eleitoral em praticamente 4 anos, o tempo do mandato. Um
feito inédito. Talvez, trate-se mesmo do maior fracasso político da história
das semidemocracias.
Um candidato inapto para o debate venceu uma eleição com o
apoio do jornalismo de cativeiro e com uma indústria de fake news muito bem
conduzida por seu filho, alimentada por dinheiro de empresários "patriotas".
Tudo isso a gente já está cansado de saber.
Testemunhar a agonia desse monstro é que é o desafio agora. Haja
estômago para ver o que já é podre apodrecer.
Mas há sutilezas.
Do meio dessa podridão, emergem novas agentes políticos oportunistas,
investidos de uma porção desproporcional de vaidade, ambição e muita
maquiagem para disfarçar a falta de ideias.
Falo de Luciano Huck.
O apresentador de televisão – essa geringonça que ainda
entulha as salas das pessoas – desfila seu imenso vazio interior já há alguns
anos nas claques adocicadas do nosso empresariado subdesenvolvido.
Para Huck, a política é um grande programa de auditório.
Quando o apresentador explora a miséria humana em seus programas ele nos dá a
perfeita metáfora do que significa um governo de extrema-direita populista: a
exploração da pobreza gira a engrenagem do medo social, atiça as pulsões de
vingança e medo e, acima de tudo, dá audiência.
A disfunção libidinal desses garotos de proveta, criados em
cativeiro, torna incomensurável para eles a compreensão de democracia e,
sobretudo, a capacidade de codificar enunciados complexos na cena do debate
público real.
É até comovente: na incapacidade de produzir um discurso original
digno de atenção, Luciano Huck jogou a toalha e adotou a tática de comunicação de
Steve Bannon: diga que é contra o sistema (contra “isso que aí está”), negue a
política e se aproprie do discurso do seu adversário – para, acima de tudo, “neutralizá-lo”.
É uma engenharia comunicacional sutil e ainda inexplorada
por especialistas em linguagem.
A conjuntura histórica, no entanto, impede que Huck considere
Bolsonaro um adversário. Bolsonaro, por sua vez, também fez uso da “tática
Bannon”, ostentando um discurso artificial e “poroso”, sem conteúdo, sem
proposta, apenas gerado para produzir efeitos “virais” e manter a chama da audiência
acesa.
Diante deste cenário, o que sobrou para o apresentador? Ir
direto à fonte do sentido, a saber, a fonte do mais profundo e consistente
sentido político da história do país: Lula.
Huck se tornou um emulador de Lula. E o que é um “emulador”?
Emular é basicamente imitar. Mas é também mais que isso: é
imitar para tirar proveito desta imitação. É pôr em ação cifras de sentido como
“rivalidade”, “inveja” e “covardia”. Emular tem um sentido muito próximo de ‘plagiar’,
mas, no caso de Huck, é moralmente pior.
A série de enunciados idênticos aos de Lula que Huck proferiu
a uma plateia de executivos chega a chocar. Ele disse: "eu não convivo bem
com a polarização. Eu não sou um cara do grito, de falar alto. Eu não enxergo
as pessoas que pensam diferente de mim como inimigos”. Cada letra e cada
palavra são o eixo central do que Lula vem dizendo há mais de 30 anos e, sobretudo,
agora, que o país está em meio a uma catástrofe gerencial.
São fragmentos milimetricamente pinçados das falas recentes
de Lula com todas as evidências de fraude e apropriação indevida. O plágio tem
um método. Troca-se apenas algumas palavras, inverte-se a posição gramatical,
desliza-se em algumas metáforas, mas o conteúdo permanece intacto, até porque o
sentido dos enunciados depende de seu contexto de emergência. A chave política
com vistas à redenção do país está posta como cenário para este processo de
emulação explícita.
Huck tem uma vaidade rudimentar e indisfarçável: quer
desesperadamente ser herói (síndrome de Sergio Moro) e busca, dentro de seu
vazio ensurdecedor, o conteúdo do outro, aquele outro que lateja na memória do
país como o maior líder político da história.
Qual coach não iria querer esse discurso para seu cliente?
O processo de emulação foi sofisticado. Huck explorou
narrativas “pessoais” como as de Lula, desfiou histórias de pessoas que
conheceu ao viajar o país para gravações do programa "Caldeirão do
Huck" e cobrou, com indignação artificial e controlada, soluções para a
desigualdade ("É decorrente da cultura escravocrata"), a miséria
("Lá [no norte de Minas] é fome, fome mesmo") e as favelas
("Viraram parte da paisagem, e não podem ser")."
Huck adentra o território da esquerda (rouba o discurso que
ele próprio combate), ao mencionar as palavras “escravocrata”, “fome” e o
sintagma “parte da paisagem”.
Para quem não sabe, as palavras carregam cifras ideológicas
e se organizam aglutinando-se a certos segmentos da sociedade. Em “língua de
gente”, seria dizer: “as palavras têm dono”. Em língua técnica seria dizer: “certas
palavras fazem parte da identidade de conjuntos específicos de enunciadores”.
Claro que isso não significa que palavras serão “proibidas”
para certos sujeitos. Muitas são, de fato (alguém já viu Bolsonaro dizer ‘escravocrata’?).
Mas, se se quiser usar palavras e enunciados de seu adversário político e
dentro de um debate público honesto, é preciso “trazê-las” para dentro de um
novo campo semântico e, assim, “reapresentar” seus sentidos.
É essa sutileza que foi captada por Steve Bannon. O “roubo”
de palavras, sentidos e enunciados de seu adversário ideológico, neutraliza a
eficácia dessas palavras, sentidos e enunciados quando usados por esse
adversário. É uma espécie de vírus linguístico que “contamina” o discurso do “outro”.
É uma tática de guerra, mas uma guerra imoral e ilegal, como as intervenções
dos EUA no Iraque e Afeganistão, por exemplo.
Huck quer o lugar de Lula no imaginário do eleitor e para
isso não poupará esforços no circuito da comunicação de guerra suja, até porque
no mundo do jornalismo, ninguém será capaz de lhe apontar o dedo e lhe acusar
de plágio, uma vez que ele representa os interesses da elite que comanda esses
meios de comunicação.
É escandaloso esse processo de apropriação indevida de um
discurso tão estabelecido como o de Lula. Huck não fez questão de esconder sua
pusilanimidade: “a gente não acha que a gente vai discutir redução de
desigualdade ou solução para a favela no Brasil com um monte de gente branca,
rica, sentada numa mesa na Faria Lima."
Ele foi capaz de usar até a referência geográfica tradicionalmente
usada por Lula em suas observações sobre a desigualdade social, a Avenida “Faria
Lima”, reduto de milionários. O apresentador foi “bem” orientado (deve ter custado
uma “nota” o serviço de assessoria de comunicação).
Incansável emulador, Huck imitou Lula mais uma vez: "se
a gente não fizer nada, este país vai implodir”. E sensualizou com indelével demagogia,
mesclando sua vulgaridade intrínseca com o enunciado roubado: "o abismo
social é gigantesco, a desigualdade social é gritante. É inaceitável. Estou
falando do fundo do meu coração."
O funcionário da Globo ainda explorou a política dos afetos
de Lula, mas aí sem o ensaio necessário a todo e qualquer impostor (a qualidade
da emulação caiu). Huck quis ativar a comoção que gira em torno da prisão
política do ex-presidente, buscando se ancorar – cinicamente – na palavra “cidadão”:
"eu quero ser um cidadão cada vez mais ativo, eu quero contribuir como for
possível para que o Brasil seja um país mais eficiente e mais afetivo."
Esse movimento de Luciano Huck, com viés escandalosamente
eleitoral, antecipa duas derrocadas retumbantes: Lava Jato e Bolsonaro. A
assessoria do apresentador enxergou que o discurso antipetista não terá mais os
mesmos efeitos que teve em 2018. O fenômeno da hashtag #VoltaPT, que viralizou
no mundo inteiro, pode ter sido um dos sinais de alerta para sua equipe de
marketing, certamente.
E aí, é preciso agir rápido.
Huck enxerga a chance de se apropriar da estrutura semântica
central do discurso histórico de Lula, na forma, no conteúdo e no tom, para
ganhar alguma “profundidade” na cena conflagrada da política brasileira - ainda
que seu gestual e artificialidade sejam um empecilho semiótico para consagrar
essa intenção velada.
Mas é bom não subestimar o péssimo nível de nossa leitura crítica
diante de tubos de ensaio eleitorais. Como disse recentemente Glenn Greenwald diante
do túmulo do jornalismo, o programa Roda Viva: “se Bolsonaro foi eleito presidente,
qualquer um pode ser”.
Muito bom!
ResponderExcluirAdorei. Leitura perfeita.Belissima dissecação.
ResponderExcluirPois é Cond. Emular "lata velha" .Oportunismo como caridade .Transformar carro velho ao inves de promover consciência de classe .Caridade dele é bom pro ego ;justiça social ; ameaça . E ao conerciais .Opa , melhor as eleições .O "crivel Hulck.
ResponderExcluir"Pois é Conde .Emular "lata velha " Oportunismo sem para choque .Caridade dele faz bem pro ego ; distribuição de renda; ameaça .E aos comerciais .Opa !! Melhor;as eleições .O"crivel Hulck "."Pois é"
ResponderExcluirTentar emular aquele carro querido , antigo o xodó da família .Não dá .Querer imitar e tirar proveito de lula e reformar "a lata velha " e deixar com cara de bolo de casamento dá indigestão .Não cola ."Crível Hulck ". Deixa nosso querido Lula ,sabemos oque é afeto e nunca nos deixa na mão."Pois é ."Ninguem quer caridade , sabemos dirigir nosso volante é que esta guardado ( Lula ) .Faz o seguinte "Crivel Hulck" chama os comerciais.E anote no para-choque :Caridade é bom pro ego ; justiça social é ameaça ."Pois é".
ResponderExcluirExcelente, Conde. Parabéns!
ResponderExcluirParabéns Condão
ResponderExcluirParabéns!
ResponderExcluirSeus comentários são bastante lúcidos e pertinentes. Infelizmente poucos compreendem a profundidade.
Gostei muito do último texto publicado no GGN: CANIBALISMO DOS SENTIDOS.
Sou escritor fora do padrão. Resido em Paulista, PE.
Gostaria de falar com você sobre o TEOREMA MATEMÁTICO SÓCIO-POLÍTICO, criado por mim. Presumo que pode ser a base de uma renovação social. Veja abaixo:
P
(Símbolo delta minúsculo) = -----
2 + 1
Caso se interesse entre em contato pelo e-mail: osmaneves@gmail.com
Osman Neves de Albuquerque
14/01/2020