Leonidas at Thermopylae (Jacques-Louis David, 1814)
“Eu quase que nada não sei. Mas
desconfio de muita coisa”
Guimarães Rosa
A interpretação
Um dos efeitos colaterais mais
extraordinários que a língua humana provoca é o apagamento de sua origem. O
sentido das palavras nos é dado como que por mágica e o tomamos como
pré-existente a tudo.
Esse fenômeno foi nomeado como
‘esquecimento n.1’ pelo filósofo e linguista francês Michel Pêcheux. A
ideologia nos afeta e nos faz acreditar – em grande medida – que somos fundadores
do próprio sentido que se recicla em nosso discurso.
Tal processo ainda subsiste na
contraface do inconsciente, que nos atravessa a economia do desejo e transforma
nossas narrativas pessoais em sintoma, fazendo do próprio debate público,
muitas vezes, um jogo libidinal.
O termo ‘ideologia’, por sua vez,
semanticamente tão surrado, não é uma estrutura malévola que nos projeta em
alienação permanente. É apenas – e no conceito – um conjunto de valores e de
discursos que nos atravessa e que nos permite enunciar e jogar o jogo da
linguagem, mediada por pressões institucionais de toda sorte.
A enunciação
A cena da enunciação que movimenta a
engrenagem dos sujeitos e da linguagem – e consequentemente da política – é,
portanto, complexa, e não se submete às análises simplórias de ‘apagamento’
propostas pelos veículos de comunicação corporativos que por sua vez se
consideram proprietários da interpretação de mundo, como ilusão desdobrada da
subjetividade possível.
Em outras palavras, a interpretação
dos enunciados na cena pública não pode se dar apenas na dimensão gramatical
sujeito-verbo-objeto (que apaga a origem dos sentidos da língua), mas deve e
pode ser restaurada na dimensão social sujeito-história, que restitui parte do
rastro semântico que fundamenta nossa atividade enunciativa e nossa própria
existência simbólica.
A codificação
Se essas regras de interpretação valem
para todo e qualquer enunciado, no contexto de vazamento de informações publicadas
na imprensa há sutilezas. Três dimensões devem ser restauradas neste caso: a
cena pragmática dos diálogos, os papéis públicos dos enunciadores e a gravidade
implicada nas possíveis violações ali expostas.
O embate de interpretação se dá
exatamente na articulação dessas três dimensões. No entanto, elas se desdobram
e promovem uma proliferação de possibilidades semânticas, tornando rarefeito o
valor de ‘verdade’ e deslocando as atenções para o ‘embate de leituras’.
O ex-juiz Sergio Moro e o procurador
Deltan Dallagnol, protagonistas da obscenidade institucional que caracterizou
os bastidores da operação Lava Jato, foram prodigiosos em desovar
contra-enunciados de ‘fragmentação’, que, por sua vez, promoveram um
estilhaçamento dos sentidos e das leituras possíveis – sob conivência e amparo
do jornalismo de guerra ora vigente no Brasil.
Relembremos: em um primeiro momento,
Moro não negou a autoria das mensagens divulgadas pelo site The Intercept
Brasil, tampouco confirmou. Criou-se de antemão uma zona obscura. Na sequência,
no entanto, ele admitiu que poderia ser o autor das mensagens, mas que “não se
lembrava” delas.
A pressuposição
Na mesma sequência, nem assim tão
lógica, Moro defendeu que as mensagens não continham qualquer tipo de
gravidade, admitindo, no regime dos pressupostos, tê-las enunciado.
Esse é um movimento defensivo de
‘controle’. Quase como uma confissão de culpa, Moro quis controlar o contexto
de emergência das mensagens que admite – ainda que implicitamente – ter
produzido.
A benevolência com que a imprensa
brasileira costuma tratar os enunciados de representantes de seu espaço
ideológico – a direita não democrática –, por sua vez, ainda favoreceu o
ex-juiz, legitimando um amplo controle no próprio regime de interpretação de seu
delito.
A onipresença
Pode-se notar, portanto, que a função
sujeito/instituição (Sergio Moro / ministro da justiça) se alastrou nos campos
da interpretação pública e da própria investigação: quem investiga o escândalo
de promiscuidade institucional e uso de cargo público para favorecimento
pessoal e político é a própria Polícia Federal submetida ao investigado/suspeito,
então ministro da justiça.
Trata-se de uma onipresença,
sustentada por dispositivos de poder corporativos e historicamente autoritários,
além de uma surpreendente truculência cruzada bastante conhecida da cena
pública brasileira: mentiras oficiais de governos impopulares associadas a
confirmações bem-comportadas da imprensa.
Fecha-se, assim, um trabalho hercúleo
de controle de sentidos, tão surpreendente quanto um juiz de primeira instância
impondo sua compreensão do direito à Suprema Corte – quando deveria ser o
contrário.
O mérito desse poder, no entanto, não
é intelectual: é conjuntural. O ex-juiz havia ocupado anteriormente o papel de
porta-voz oficial na esteira do simulacro de indignação inoculado na opinião
pública brasileira, representado em grande medida pela dicção oficiosa dos
veículos de comunicação.
O simulacro
A esta personagem insignificante,
vetor e depositário do ódio residual de uma elite perdedora não democrática,
foi dada uma importância muito além de suas possibilidades. Sergio Moro não tem
carisma, ethos, personalidade e quaisquer atributos associados a proficiência
retórica.
Sua arguição é tecnicamente precária,
sua iconografia é obscurantista, sua escrita carece da coesão textual elementar
adquirida no ensino básico e sua presença cênica lembra uma figuração de
segunda classe ou a própria agonia existencial postulada pelo Barão de
Munchausen: um sujeito que busca salvar a si mesmo, puxando-se do pântano pelos
cabelos.
Foi o amargo preço de uma onipresença
forçada.
Em outras palavras, aquele que jamais
foi protagonista se viu, com os vazamentos do The Intercept Brasil, diante do
espelho impiedoso da história: um simulacro fracassado.
O estilhaçamento
A linguagem humana passa por
transformações consideráveis depois da massificação do sentido nas plataformas
digitais. A hiper estrutura quase autônoma que encadeia significantes e
significados (a língua, para Ferdinand de Saussure) passou a realizar
protocolos de codificação e injunção mais complexos que a mera interação social
sujeito-instituição-sujeito.
A interação digital impõe uma escuta
coletiva permanente que modifica a restauração do sentido dos enunciados. O
‘dizer’ individual e privado saltou para um púlpito tecnológico que lhe
consagra ao escrutínio perpétuo. É uma agonia que nos aprisiona a uma nova
lógica social.
É também um processo traumático e
assustador, mas ao mesmo tempo, libertador: para se restituir o gozo à
intimidade do discurso é preciso ressignificá-la. Ou: quando os sentidos consagrados se
estilhaçam, abre-se uma janela para um novo mundo – o que exige ação concreta
dos sujeitos.
As mensagens privadas – que não são
privadas –, publicadas pelo site The Intercept Brasil e que revelam o conluio
entre juízo e Ministério Público na condenação do ex-presidente Lula entram
nesse novo mundo do estilhaçamento dos gêneros e dos sentidos.
A grade possível para sua
interpretação não remonta mais ao regime de pressupostos bem-comportados
chancelado e institucionalizado pela leitura postulada pelos veículos de
comunicação.
A judicialização
Quando o ex-juiz Sergio Moro
desaconselha a investigação sobre o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso,
por entendê-lo como um aliado, ele escancara a conivência partidarizada instalada
no judiciário.
Essa conivência alimenta a
intolerância política, mas, ao mesmo tempo, fundamenta o clima de terror
político instalado desde o golpe de 2016 no Brasil: para adeptos do ódio, há um
prazer adicional em saber que a condenação do maior líder popular do país se
deu sob ação política.
O enunciado privado que revela
prevaricação ganha o significado de ‘autenticação política’, não de prova
incriminatória, pois a escuta estilhaçada que domina a cena pública digital produziu
mais um efeito perturbador – agora sob a regência da própria operação Lava Jato
e seu discurso maníaco de ‘combate a corrupção’: a judicialização da linguagem.
O Castigo
Os becos sem saída se multiplicam,
mas os efeitos colaterais são para todos os lados. A blindagem de um ex-juiz
que violou praticamente todos os protocolos do direito público e foi agraciado
com um ministério justamente por isso, ricocheteia na constatação de que a pior
das maldições é o próprio substrato químico desta blindagem.
O ex-juiz Sergio Moro já está
condenado pelos crimes que cometeu. Se houver um futuro, nele dir-se-á: ele ‘foi’
ministro de Jair Bolsonaro.
Não há castigo pior do que ser
obrigado a ostentar esse item na própria biografia. Pertencer ao primeiro
escalão de um governo chefiado por um pária internacional com extensa ficha de abominações
verbais e suspeições venais é, por si, a maior das humilhações.
A dispersão
O direito, a teoria da linguagem e as
redes sociais convergem para uma nova ordem na dispersão da subjetividade e nos
processos de interpretação. A tese do apagamento da origem semântica subscrita
nas línguas humanas como condição sine qua non para a existência do
enunciado também pode ser projetada em um novo lote de simulacros à disposição
no mercado dos sentidos.
Lacan dizia que ‘o sujeito não sabe o
que fala porque ele não sabe o que é’. Neste sentido, desconhecer a origem de
si é também desconhecer a origem do que se diz.
A hipótese da análise do discurso
francesa, de que o apagamento da origem do sentido é estrutural para que haja
uma língua e um discurso, pode ser fatorada em níveis mais superficiais como o
do discurso político.
Sergio Moro e congêneres – e o
próprio direito submetido a pressões de turno – podem mesmo acreditar que
praticam alguma espécie de combate à corrupção, por mais inusitado que isso
possa parecer à observação empírica.
Chega a surpreender bastante, mas uma
operação policial cuja estrutura mais profunda é a própria corrupção em sua
acepção clássica, legitimou-se no horizonte da cena pública brasileira –
igualmente corrompida pela imprensa – dizendo ‘combater’ a corrupção. Um
potencial relato de caso para os anais da contradição.
A farra das mensagens que revelou um
procurador buscando desesperadamente o enriquecimento ilícito e um juiz
assumindo o papel de coordenador de força-tarefa, dentre tantas outras
obscenidades e a despeito da gravidade moral e judicial ali embutida,
estabeleceu, entre outras coisas, um novo capítulo de negação da realidade,
desencadeando uma profusão de memes de internet e entrando para o folclore das
bestialidades grotescas do submundo político-judicial brasileiro.
Negar a realidade, afinal, é também
negar processos de significação.
A coação
Diante da perplexidade do jornalista americano
Glenn Greenwald em testemunhar a inércia inicial do nosso sistema institucional
em reagir ao escândalo da ‘Vaza Jato’, resta uma cifra de compreensão.
O vencedor do prêmio Pulitzer e
editor-chefe do site The Intercept Brasil desafiou não apenas o mais célebre
sistema de lawfare já constatado no campo do direito: ele identificou uma rede
complexa de conspirações que transcendem a mera expectativa de punição pontual.
A interpretação, sabemos, sempre foi
controlada, mas no caso da repercussão da reportagem ‘Vaza Jato’, ela foi
também coagida.
A diversidade de interpretações –
cara ao segmento democrático – que respeita as possibilidades múltiplas de se
produzir sentido e valor de verdade através do árduo trabalho cognitivo que é
articular enunciados, mapear intertextos e correlacionar argumentos, deu lugar
à judicialização da linguagem, que destilou sua sanha punitivista ao segregar e
culpabilizar aqueles que não se submetem ao discurso único do aniquilamento (de
sentido, de um país).
O jogo de interpretações, no entanto,
não tem fim. E o sistema espontâneo da língua sempre encontra uma ‘vacina’ para
as tentativas reincidentes de domesticação feitas pela estrutura de poder.
A história
As mensagens trocadas por Deltan
Dallagnol e Sergio Moro configuram um dos registros jornalísticos mais
eloquentes de nosso tempo – e ao mesmo tempo, mais degradantes.
Ao testemunhar esse conjunto de
gestos e ações mergulhados no ambiente putrefato do oportunismo político e do
auto favorecimento rudimentar, o trabalho de Glenn Greenwald se impõe como um
divisor de águas na imprensa internacional.
Denuncia-se ali uma pletora de
monstruosidades: um governo de pendores fascistas, uma cultura de vingança, um sistema
conspiratório, uma imprensa instrumentalizada e o conjunto ilustrativo dos
delitos mais elementares e abomináveis.
A história – é crucial que se diga –
não quer saber de vencedores, muito menos dos maus vencedores. Esta tese
envelheceu (teses envelhecem).
A história quer saber de
interpretações.
O embate entre o aniquilamento dos
sentidos e a construção dos sentidos pode até demorar para que se chegue a um termo
– até porque desfechos não são bem-vindos no emaranhado narrativo que subjaz às
dicções do tempo.
A luta entre o bem e o mal, por sua
vez, é outro simulacro.
A resposta para este momento tão
peculiar da história brasileira será conquistada através da formulação
incessante que caracteriza a busca civilizatória – por mais agônica que seja –
instada na confecção de artigos, reflexões, ensaios, resenhas, gestos,
discursos, teses e propostas soberanas de restauração social.
Os sentidos da aniquilação que
deflagram o espírito vingativo de um tempo insano são apenas o substrato que
prepara a linguagem para uma nova safra.
A democracia é um elemento
estruturante da língua humana. Enquanto houver essa língua, seu retorno é uma
questão de tempo.
* Ensaio originalmente publicado no livro "Relações Obscenas", editado pela Tirant Lo Blanche (2019).
Prezado Gustavo Conde, encantado com seu Ensaio, permita-me apenas o gesto dos meus aplausos! Carlos Wanderley, de Natal. Professor aposentado da UFRN.
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