sábado, 18 de abril de 2020

Esquerda precisa parar de ser pura


"A prepotência dos autoproclamados promotores da civilização é mais tóxica que o deboche fascista dos extremistas da direita. Perde-se conexão com o faber linguageiro nesse processo suicida da pureza"

Como diria a linguista Jacqueline Authier-Revuz, a língua não é idêntica a si mesma. Se a esquerda insistir em travar uma relação ingênua com a linguagem (baseada em preceitos morais e achando que a língua humana é transparente), a derrota não será apenas certa: será devastadora - e contínua.
Chegamos ao paroxismo de testemunhar uma esquerda limpa e bem comportada versus uma direita subversiva. É cruel.

Passou da hora de usarmos as mesmas armas. Mas lembrando de Pierre Menard, de Borges, uma safra subversiva de enunciados produzidos pela esquerda jamais será similar à indústria de fake news ostentada pela direita.
É falacioso dizer que ‘não usaremos as mesmas armas deles’ - pelo simples fato de que jamais seremos iguais a eles (mais que falácia, é um simulacro: nós bloqueamos nosso ímpeto de reação justamente porque somos atravessados pelos antivalores embutidos nessa alteridade - diferentemente deles, que instrumentalizam os valores da esquerda sem qualquer espécie de pudor).
Não sei se fui claro - provavelmente não - mas que se dane.
A propósito, é preciso ter uma relação menos ingênua com a linguagem.
Uma ação pensada na indústria dos compartilhamentos digitais é a única ação possível que poderá nos tirar desse limbo comunicacional. Será preciso ‘sujar as mãos’ (e do que se trata a revolução, caras pálidas?) mas, a metáfora da sujeira precisa ser lida na chave não inocente (escute um tema de jazz sem ‘sujeira’ e morra perdendo o que vale a pena na vida).
Basta de acovardamentos.
Será preciso coragem, no entanto, para avançar nessa estratégia. É preciso pesquisa, estudos no campo da linguagem, coisa que as gigantes tecnológicas já fazem há tempos - e coisa que a esquerda e suas burocracias partidárias apodrecidas vetam de maneira ostensiva, no pânico de perderem suas razões de ser já perdidas.
Um protótipo para não dizer que não falei de flores: uma ‘fake news - antídoto’, veiculando que ‘Bolsonaro telefonou para Lula chorando e pedindo apoio para não cair’ funcionaria como um desfibrilador no peito seco do bolsonarismo de aluguel. A gente fisga esses animais pela contradição, ignorando o pudor mesquinho de uma esquerda que se acha pura da cabeça aos pés.
Até eles negarem isso, será tarde demais.
A lógica é essa.
E a dimensão ética aqui demanda uma leitura menos rudimentar que a infantilidade romântica daqueles que acham que nasceram para serem heróis: Tratar-se-á de um soco na indústria das fake news, não de uma adesão (porque seu efeito prático será derrotá-la).
O embrião desse processo já está em curso. A esquerda mente diariamente sobre Bolsonaro, mas no suporte errado (o suporte de quem acha que está falando a verdade). Câncer, facada, traição, choro, sexualidade… Qual cidadão digital de esquerda que não vaticinou essas alegorias?
Fato é que a discussão sobre verdade/mentira é uma das maiores regressões cognitivas a que a espécie humana teve a infelicidade de participar. O coronavírus parece ter vindo exatamente para isso, para reposicionar nossa relação com valores de verdade e com a verdadeira dimensão da linguagem - que não é informar, mas significar.
A prepotência dos autoproclamados promotores da civilização é mais tóxica que o deboche fascista dos extremistas da direita. Perde-se conexão com o faber linguageiro nesse processo suicida da pureza.
A possibilidade de experimentar mais uma vez uma sociedade digna da linguagem que usa é usar essa mesma linguagem para fazer a correção de percurso histórico: com pesquisa, com tecnologia mas, sobretudo, com a coragem de romper com sentimentos e valores que nos arrastam para o abismo da pureza.
Se fizermos isso, ganhamos.

2 comentários:

  1. Me veio a mente ao final do seu texto uma canção que ouvi na voz de Ney Matogrosso e para ser honesto contigo não vou conferir a letra na web mas é assim: Eu me sinto tolo como um viajante pela sua casa. Passáro sem asa. Rei da covardia. Mas se guardo tanto essas emoções nessa caldeira fria é que me arde o medo onde o amor ardia... por um periodo tivemos um encontro com o amor, a compaixão, sei lá

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  2. mas eu sei Condão a hora é de ir pra cima com masidão no peito pra ser brasil outra vez
    abraço...

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