domingo, 13 de dezembro de 2020

A repetição que nos sufoca, por Gustavo Conde

Imagem: René Magritte, 1929
O nível de repetição dos enunciados políticos atingiu um patamar insuportável, de saturação máxima. O sentido “afunilou” - pela precarização da opinião pública, do jornalismo, dos próprios agentes políticos e, é claro, pela massificação do discurso nas redes sociais.
Lê-se um artigo, um manifesto ou um mero texto, e leu-se todos.
Repetição faz parte. Faz parte do ‘espetáculo’ do sentido e do discurso (da significação). É preciso repetição para que haja ‘progressão’.
Mas atingimos um ponto em que o sentido gira em falso. Ele ‘espana’.
O editorial da Folha de S. Paulo deste sábado, 12, é a expressão máxima desse limite. Ele repete tudo que se disse nas redes sociais nos últimos dois anos. Só é surpreendente porque é um dos pilares do golpe - a Folha - que o enuncia. Chama Bolsonaro de genocida, o que, por repetição, torna-se um clichê pouco produtivo.
A ideia de que uma mentira repetida mil vezes se torna verdade tem a sua contrapartida, infelizmente: uma verdade repetida mil vezes se torna mentira.
A notícia de que a repetição semântica está em seu nível máximo de saturação política é boa, não ruim - mas é preciso paciência. É o momento que precede a ‘virada’ (depois da calmaria, a tempestade, depois do vazio absoluto, o big-bang, depois da mesmice castradora, o desejo de liberdade).
Ou: se os processos de significação do discurso público caíram no vazio, a própria linguagem tenderá a dar um jeito de re-equalizar a sua sobrevivência enquanto sistema, enquanto estrutura - pelo menos é o que afiança a experiência histórica.
Depois das trevas medievais, o renascimento. Depois do holocausto, os anos 60. Depois da ditadura, Lula.
*
O processo de repetição em curso é amplo. Não são apenas palavras ‘gastas’ (democracia, esquerda, liberdade, direitos humanos) que veem seus sentidos escoarem pelo ralo podre subscrito nos moldes neoliberais de interpretação de texto. São ‘modos’ de enunciar, são ‘ethos’, são dicções, são estruturas gramaticais específicas (as formas da lacração, da cultura do cancelamento, dos falsos arroubos por justiça impregnados em editoriais e colunas de articulistas que insistem em dizer sempre a mesma coisa para receberem a aceitação pública domesticada de sempre).
Deste processo ninguém escapa, nem quem supostamente o identifica - como este singelo missivista. Quando o colapso da repetição toma conta do discurso, ele se alastra para todos os lugares - e não há como enunciar sem estar nele inscrito.
A linguagem, no entanto, permite um jogo de contrários - e vem daí sua imensa vocação para aquilo que gostaríamos de chamar, aqui, de ‘liberdade’, mas para o que, no entanto, não temos mais palavras suficientes ou adequadas.
O discurso público é uma armadilha gigantesca. Ele se contrapõe ao discurso literário que atrai para si toda a complexidade do sujeito e toda a polissemia dos enunciados. É o movimento manada versus o movimento solitário do espécime em ação, predando o seu sentido em silêncio e dialogando com o infinito que lhe habita as torrentes internas do desejo.
Eis o dilema que amargamos no preciso momento: a possibilidade de enunciar “de fora” versus a fatalidade de co-enunciar “de dentro”. De um lado, a ousadia possível e o gesto político-revolucionário por excelência: dizer o que não se diz para que o sujeito se renove. De outro, a aderência incorrigível dos sem-imaginação: seguir ‘modismos’ e flanar nas ondas autoconfirmatórias da aceitação social-digital.
Lembrei-me aqui de Foucault, na vertigem do inenunciável. O filósofo costumava buscar palavras ‘desconfortáveis’ para singrar o seu discurso e/ou mesmo evitá-las, forrando a emanação lexical de alertas para as armadilhas estruturais da significação. Não raro, postulava uma palavra não existente para abrigar um conceito, fazendo questão de não materializá-la para, assim, evidenciar os limites da própria linguagem.
O desafio neste brutal início de século 21 - donde parece que não aprendemos nada nem com a história nem com a ciência nem com os nossos maiores traumas -, é a busca pelo desvencilhamento, pela ‘libertação’ da repetição sufocante, da lógica liberal (eis o perigo do significante insidioso em movimento ‘liberdade - liberal’), da pressão normativa, da obrigação de dizer o mesmo que seu outro para ser aceito por ele.
O fascismo é café pequeno diante do monstro antissubjetivo que ele ajudou a criar, com as respectivas e infames colaborações das instituições. O fascimo pode ir embora, mas não sem deixar um rastro colossal de destruição. Olhem para o Congresso brasileiro, para o STF, para o egoísmo candente de setores autoproclamados de ‘esquerda’ e verão o que ainda nos aguarda em termos de ‘lalia’ para as próximas gerações.
A língua e a arte permitem sobreviver a tudo isso. Usem-nas. Renovem-nas. Abusem da generosidade consigo próprios e deem uma chance para seus corpos e mentes prosseguirem com o mínimo de oxigenação simbólica nesse restante de vida biológica que eventualmente ainda nos pode sobrar.
A palavra ‘resistir’ não é apenas uma muleta retórica para se repetir à exaustão na esteira das aceitações ideológico-digitais. A palavra ‘resistir’ é muito mais do que isso. Ela designa o olhar de um ‘predador de sentidos’ que não se sacia mais com a mesma ração insalubre, servida nos parques temáticos do debate público extenuado diante da própria fraqueza e fracasso.

Saibamos sair desse labirinto. 

2 comentários:

  1. Conde, mesmo que eu queira me enveredar pelos caminhos da literatura, só me faz sentido as que se construíram em tempos de crise como o que vivemos, do começo do século XX, do ambiente imperialista e, portanto, fascista. É claro que muitas coisas eram diferentes socialmente, mas o essencial está lá. É como olhar a si mesmo num espelho do passado e ir se reconhecendo e se renovando, percebendo que o final disso é a superação.

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