A Flip Virtual 2020 mostrou que há um equívoco fundamental na leitura dos especialistas de esquerda - sic - sobre Youtube e tráfego nas redes sociais. O maior evento literário do país e um dos maiores do mundo tem um canal bem pequeno no Youtube (19 mil inscritos) e as visualizações das mesas virtuais são também bem pequenas, não chegando, muitas vezes, a mil.
Mas o evento teve alto financiamento, recebeu edição audiovisual de luxo e teve larga cobertura nas mídias tradicionais.
Mais que isso, a Flip - ainda que tenha alguns problemas - tem ‘peso’ editorial. Tem curadoria, tem marca, tem história.
Até aqui, não há novidades. A novidade é comparativa. Trata-se de testemunhar a sanha de ‘mídias alternativas empresariais’ e de ‘comunicadores alternativos empresariais’ pela audiência. Sanha seguida de deslumbramento.
No Youtube, sabemos: quanto mais tosco, maior a audiência. Há uma lógica insidiosa na plataforma - e/ou na natureza humana - que privilegia o bizarro, o exótico, o fofinho ou aquilo que já é fartamente conhecido e consumido (canções, por exemplo).
Produzir debate no Youtube, encerra uma opção franciscana pelo minimalismo digital. Em regras gerais, quanto mais qualidade, menos audiência.
Como conviver com esta constatação terrível? Basta ter alguma imaginação - somada a pitadas de autoestima. O que vale para quem produz conteúdo sério no Youtube é a densidade editorial, não a quantidade de cliques.
Claro que não pode ser “terra arrasada” (ter UMA pessoa assistindo). Mas, como todos sabem, quatro pessoas conversando juntas já pode ser enquadrado como ‘formação de quadrilha’, se é que me entendem.
Para debates públicos em rede, ter uma linha editorial forte, personalizada, densa, original, é muito mais agregador em termos de valor do que uma cadeia populosa e domesticada de usuários que costuma querer “sangue” ao invés de reflexão.
Humildemente, a Flip esfregou essa constatação na cara de muita gente deslumbrada. Traduzindo: não há drama em não se ter dezenas de milhares de internautas conectados em uma live (que um amigo querido chama carinhosamente de “death”). Isso é tarefa para Neymar, Felipe Neto, Kondzilla, ResendeEvil e debatedores "ultraqualificados" e "refinados" como eles.
Deixar essa lógica imperar em um universo de debate público é transformar o debate público em um subproduto repetitivo, autoconfirmatório, precarizado e, a partir de um certo ponto de saturação, intragável.
Porém, nem tanto ao céu, nem tanto à terra: o fato de a Flip não buscar uma parceria com algum perfil de Youtube estabelecido, respeitável e despido de veleidades comerciais - como o perfil da Casa do Saber, por exemplo, que tem um milhão de inscritos - me pareceu um tanto esquisito.
Ossos do ofício: business são business. Muita gente ainda engatinha na compreensão do que “pode” ser um emaranhado de canais providos de propósito intelectual de fato e embarcam no sentido pré-fabricado da “exclusividade”.
Fica, no entanto, um recado forte para aqueles consumidores de conteúdo que supõem não terem condições de alimentar um canal no Youtube, ou seja, de ‘produzirem’ conteúdo.
O recado começa pelos seguintes e singelos enunciados: 1) se você não está satisfeito com o que lhe é servido, faça você mesmo; 2) se você está satisfeito com o que lhe é servido, alguma coisa está errada com você.
Décadas atrás, havia uma pichação muito popular pelo país: “Só Jesus Cristo salva”. Sua estrutura gramatical permite substituir o fanatismo pela ação: “Só a escrita salva”. Seguida de uma suíte: “Só a formulação salva”.
Em suma, é preciso formular, formular, formular. Viver de maneira passiva e feliz dos conteúdos que nos são ofertados é uma triste condição de degradação cognitiva. Tudo é rito de passagem: não se pode cair na estagnação da fidelidade (e a palavra terrível ‘fidelização’ está aí para não me deixar mentir).
De uma certa maneira, os setores que pensam lutar contra o fascismo neste país estão todos aprisionados nesta engrenagem discursiva neliberal-digital da eterna repetição e da eterna autodomesticação consentida.
Enquanto isso, podemos assistir aos debates da Flip - que continuam disponíveis para quem quiser assistir - sem culpa e sem medo: não dói e tem qualidade.
Este artigo corrobora uma constatação. Fui assistir a uma palestra de um “filósofo da moda” num espaço sem conforto e lotadaço. O personagem tem a pachorra de repetir até as piadas.
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