sábado, 2 de outubro de 2021

Psicologia: ampliação das fronteiras da profissão, por Ana Bock, Marcos Ferreira e Marcos Amaral

Fazendo coro com o presidente da república, a imprensa minimiza hoje o tamanho do impacto da pandemia no país. Mas, qual o tamanho do desastre da pandemia neste momento? Como decidir se quinhentas mortes por dia é um número aceitável, para considerar que a pandemia já não é mais um problema?  

Essa decisão pode ser feita por comparação com outros desastres. A média móvel de número de mortes por COVID no momento em que a imprensa considera que a pandemia já esteja no fim dava uma vez e meia o tamanho do desastre de Brumadinho por dia. Ou, num tipo de desastre mais comum, esse número equivalia a dois acidentes aéreos de grande porte por dia. Com o crescimento da média móvel de mortes (previsto tanto pelo Nicolelis quanto pelo Átila Iamarino) no dia de hoje já voltamos a ter duas vezes e meia o tamanho do desastre de Brumadinho e quase quatro aviões de grande porte. Por dia.

No primeiro ano da pandemia, houve país com cem milhões de habitantes em que três mil perdas foi o número total de mortes causadas pelo vírus corona. Em algumas semanas esse foi o número diário de perdas no Brasil.

 

Mas tanto no caso de Brumadinho, quanto no caso de acidentes aéreos, o número de mortes é muito maior do que simples menção no jornal do dia, como é feito com a média móvel de mortes por COVID. Instala-se ou é instalado um consenso de que, com quatrocentos e cinquenta ou setecentas mortes por dia seja um número aceitável de mortes. 

 

Do ponto de vista da constituição das subjetividades, a forma como são estabelecidos os consensos que nos envolvem precisa ser alvo de estudo e debate. Mas, quem teria o papel de fazer isso? Que profissão seria chamada para compreender e atuar frente a essa anestesia que faz com que quinhentas mortes sejam consideradas algo aceitável, ou até bom? 

 

Parece óbvio que isso teria a ver com a Psicologia. Mas, neste momento, esse tipo de problema não está ainda posto, nem reconhecido, como típico da profissão. Como podemos estabelecer um consenso de que a elucidação dos consensos em que estamos imersos deva ser objeto da contribuição da Psicologia para o debate social?

 

A propósito, quem inventa as práticas que podem ser consideradas da alçada de uma profissão? Quem inventa aquilo que vai ser considerado parte da profissão das psicólogas? Quem produz o alargamento das fronteiras de uma profissão como a Psicologia?

 

Há quem creia que a profissão seja criada, ou tenha suas fronteiras alargadas, pela academia, pelas pesquisas. Isso já foi afirmado textualmente por dirigentes de uma entidade científica, há poucos anos atrás.

 

No processo de construção do projeto do Compromisso Social, ficou estabelecida compreensão de que o alargamento das fronteiras da profissão é produzido pelos profissionais que estão no campo de atuação. Dizíamos, a profissão é inventada pelos colegas que estão todos os dias criando novas possibilidades de uso do conhecimento psicológico e, com isso, criando novos conhecimento ou exigindo que esses conhecimentos sejam sistematizados por profissionais preparados para isso.

 

Em qualquer hipótese, as fronteiras da profissão precisam ser alargadas constantemente, como forma de absorver as criações dessas colegas que estão nas pontas dos fazeres profissionais, o que é feito paripassu à busca de atender progressivamente mais necessidades da população brasileira. Nesse contexto, a ampliação das fronteiras da profissão ganha importância por criar possibilidades de materialização do saber psicológico na melhoria da vida das pessoas.

 

Assim, é preciso somar a temas como a atenção a direitos humanos, a qualificação da prática profissional e a expansão da presença da Psicologia na sociedade (já descritos como fundamentais no projeto do Compromisso Social), o tema da expansão das fronteiras da profissão.

 

Nessa perspectiva é que muitos eventos foram criados com o fim de provocar reflexão sobre dimensões importantes de serem consideradas pela profissão. Exemplo disso foi o Seminário Nacional Mídia e Subjetividade, onde exploramos o papel da profissão na compreensão dos processos de comunicação e sua conexão com a luta pela democratização dos meios. Mais uma vez, foi possível conjugar reflexão e intervenção no debate social, pois nossas entidades tiveram papel fundamental na realização da Conferência Nacional realizada a seguir sobre esse tema.

 

No Seminário Nacional Democracia e Subjetividade, no ano de 2007, exploramos a contribuição da Psicologia para a produção de sujeitos democráticos. 

  

No Seminário Internacional sobre a Psicologia das Emergências e Desastres em 2006, exploramos a contribuição da Psicologia para a produção de sujeitos resilientes e comprometidos com a produção de autodefesa coletiva. Chamamos experts internacionais desse tema para nos ajudar a organizar um ingresso organizado da profissão nessa política pública.

 

Quando aconteceu a campanha conjunta com o Conselho Federal das Assistentes Sociais, no alvorecer do Sistema Único de Assistência Social (SUAS)  exploramos as possibilidades de contribuição da Psicologia para essa política pública, como atuação interdisciplinar e multiprofissional. 

 

Mas a provocação que causou maior impacto na profissão e abriu as portas para esses esforços de expansão das fronteiras por meio de seminários e campanhas, aconteceu no ano dois mil, quando decidimos reunir quem estava produzindo esse alargamento de fronteiras da profissão no Brasil. 

 

Organizamos a primeira Mostra de Práticas Profissionais Psicologia e Compromisso Social. Aliás, neste dia cinco de outubro estamos completando vinte e um anos da realização dessa primeira Mostra.


Foi um evento lindo, com mais de 12 mil visitantes e mil e seiscentas práticas apresentadas, além de muitas manifestações culturais, atividades de protesto e reconhecimento da força da nossa profissão. Tudo era grande e tudo era novo na Mostra. O auditório das atividades magnas tinha mais de três mil assentos. Todos ocupados, o que não era comum numa profissão em que os congressos costumavam contar cerca de mil participantes. Houve caravanas de profissionais de diferentes estados no Brasil. 


Na produção da Mostra houve enorme interação na autarquia, devido a um método que adotamos depois para todo tipo de atividade conjunta da Autarquia. Ana Bock se reunia por telefone com presidentes de todos os regionais, quinzenalmente ou até semanalmente. Isso estabeleceu um forte grau de sinergia. sincronia e similaridade na organização em todos os estados. Aliás, depois da Mostra esse método foi generalizado para diferentes tipos de iniciativas como no evento da mídia e subjetividade e no das emergências e desastres. 

 

O programa da Mostra incluiu desde recitação de poesia, apresentações de teatro, projeção de filmes produzidos tanto para uso em atividades de psicólogas, filmes produzidos como resultado de atividades profissionais, esposição de peças de artesanato produzidos no trabalho de psicólogas, uma passeata contra o trabalho infantil, atravessando a mostra, com a participação de crianças com palavras de ordem “criança não trabalha, criança dá trabalho”, até chegar ao show de encerramento com banda Mulheres Negras. 

 

Mas, o mais impactante foi o encontro de profissionais que discutiam sobre os temas sobre os quais intervinham. Tivemos gente de todos os estados brasileiros apresentando trabalhos. A organização era por “ruas” temáticas. Em cada rua ficavam as pessoas de diferentes regiões, diferentes abordagens, diferentes níveis de envolvimento com a profissão, diferentes níveis de formação acadêmica. 

 

Em um mesmo espaço ficavam profissionais que trabalhavam com um mesmo assunto, por exemplo, com o que à época eram chamados meninos e meninas de rua. Era emocionante ver as pessoas, desde o momento em que estavam fixando seus cartazes e dispondo, já conversando sobre como resolviam este ou aquele problema da sua prática profissional.

 

Assistir a essa interação na instalação da Mostra fez com que a fala da Ana na abertura oficial estabelecesse uma linha discursiva que foi ficando fixada no projeto do Compromisso Social: dali em diante as pessoas já não se perguntariam que abordagem ou escola adotavam na Psicologia, mas sim a que problema social elas davam combate.

 

Vale notar que a grandiosidade do evento não tem relação com alguma megalomania. 

O fato é que a Psicologia se ressentia da falta de canais para se expressar. Ficou nitidamente estabelecido que a comunidade da Psicologia necessitava de mecanismos e canais de expressão que permitissem que ela se reconhecesse no tamanho que já tinha e destravasse a possibilidade de se expandir.

  

A Mostra se constituiu em  um canal de expressão e de reconhecimento da beleza, do tamanho e da diversidade da profissão no Brasil. 

 

Mas houve pelo menos um percalço importante de ser mencionado: organizamos a Mostra, fizemos a divulgação, convocamos a profissão, mas quando chegou a data de fechar as inscrições de trabalhos, havia menos de duas dúzias de inscrições. As pessoas que já conhecíamos e que faziam trabalhos que deviam ser apresentados simplesmente não compareceram para se inscrever. O que estava acontecendo? O que fazer com essa ausência?

 

Tomamos duas providências que impactaram a realização da Mostra. Chamamos o Marcus Vinícius para um consultoria, em que ele recomendou que buscássemos autorização para fazer o chamamento. Na avaliação dele, a entidade que promovia a Mostra poderia não estar sendo reconhecida pelas pessoas que eram alvo da nossa convocação como tendo autoridade ou legitimidade para essa ação. De fato, desde o planejamento estratégico que havíamos realizado em 1997, tinha ficado nítida a necessidade de fazer com que essa entidade ganhasse reconhecimento da categoria profissional. 

 

A outra providência foi fazer um rápido levantamento, um conjunto de entrevistas, com pessoas que nós conhecíamos e que faziam trabalhos que deviam estar na mostra, mas não tinham se inscrito. De todas elas ouvimos a mesma explicação: o que eu faço é tão diferente daquilo que aprendi no curso de Psicologia, que compreendia nem ser mais profissional da área. Ou seja, as pessoas que estavam inventando novas possibilidades e frentes para a Psicologia se sentiam fora das fronteiras da profissão.

 

Pois bem, calibramos a convocação e ao final reunimos mil e seiscentos expositores. E, mais do que isso, recombinamos as fronteiras da profissão, colocando para dentro todo mundo que trabalhava com temas que escapavam das definições tradicionais, como por exemplo, populações precarizadas. Desde profissionais que atendiam população na rua, até quem trabalhava com rádio comunitária, populações indígenas, com o MST, meninas e meninos de rua.

 

A partir da nossa experiência podemos afirmar que esse sentimento de não pertencimento à profissão atingiu todo tipo de profissionais. Atingiu muita gente importante para o estabelecimento de um novo desenho da profissão. Um exemplo chocante: a Psicóloga Sônia Fleury foi uma das formuladoras e criadoras do SUS. Nada menos do que o Sistema Único de Saúde, de que todos nos orgulhamos tanto. Todos os sanitaristas com quem conversamos apontaram a importância da sua contribuição, inclusive reconhecendo que sua participação trazia marcas oriundas da formação em Psicologia. Mas ela própria nos contou que estava muito feliz por ser convocada pelo CFP já algum tempo depois da Mostra, porque para ela isso era como uma “volta” para a sua profissão.

  

Importa ressaltar que, nesse tema da expansão das fronteiras, de novo foi preciso mesclar iniciativas dirigidas tanto a profissionais da Psicologia, como à sociedade em geral e a atores sociais vinculados aos temas de interesse da profissão. Ocorre que tanto a sociedade em geral, quanto a própria comunidade nacional da Psicologia (aí incluídas a categoria profissional, os responsáveis pela formação de novas psicólogas, profissionais vinculados à produção de conhecimento e estudantes) sobre a necessidade e importância desse esforço de expansão das fronteiras da Psicologia.

 

A Mostra parece ter impactado de forma significativa a história da profissão. Pesquisadoras da História da Psicologia no Brasil, como Mitsuko Antunes, indicam de forma clara a compreensão de que a Mostra deva ser considerada um momento de inauguração de uma nova etapa na vida da profissão. Do nosso ponto de vista, a Mostra materializou o projeto do Compromisso Social, que deu origem a essa virada da Psicologia na virada do século.


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