domingo, 21 de novembro de 2021

A produção de sujeitos democráticos, por Ana Bock, Marcos Ferreira e Elisa Zaneratto Rosa


É crescente na profissão a certeza de que Psicologia só rima com democracia. Quando a Democracia é agredida ou diminuída, imediatamente a Psicologia perde espaço e começa a se desfigurar.

Para nós, da Psicologia, está claro que viver em um espaço democrático é algo que produz saúde mental, fortalece o tecido social e permite que justiça e generosidade caminhem juntas.


Mas, como essa importância da Democracia aparece na vida das pessoas? Como podemos reconhecer os modos de produção de sujeitos que encarnem a Democracia como algo inescapável, irrecusável? Como pode compreender profissionais da Psicologia como sujeitos democráticos? Como podemos contribuir para a produção de sujeitos democráticos?

Algumas dimensões mais fáceis de denotar na caracterização desses sujeitos democráticos podem nos ajudar a compreender a sua identificação. Por exemplo, são sujeitos dispostos a reconhecer o direito do outro ter direitos. Esse direito é fundamental: o direito a ter direitos. Normalmente estamos empenhados na defesa de direitos com conteúdos específicos, mas isso pode ser ainda insuficiente para compreender o papel que os direitos desempenham na vida dos cidadãos. quando confundimos o direito a direitos com o conteúdo de um direito específico, abrimos a porta para todo tipo de sofisma e inversão.

A necessidade dessa afirmação pode decorrer de uma visão que adotamos como profissionais da Psicologia. Talvez o correto seja dizer: o fundamental é que os sujeitos se sintam no direito de ter direitos. Quando uma pessoa não sente se sente no direito de ter direitos, todo direito a que acede, corre o risco de ganhar caráter de concessão.

Outro exemplo de dimensão importante no reconhecimento de sujeitos democráticos decorre desse direito a ter direitos afeta a noção de cidadania. Cidadão é aquele que está em luta por garantir e ampliar seus direitos.

Por isso é que a figura do torturador é central no ataque à democracia, como representação mais concreta da dimensão simbólica desse ataque. A tortura é o exercício máximo da retirada e da negação de direito a direitos. O torturador é o exemplo máximo do sujeito antidemocrático, ou seja, ele pode servir como referência para a caracterização, por contraposição, do que sejam sujeitos democráticos. O torturador opera uma inversão na lógica dos direitos da pessoa humana, porque ele se sente no direito de retirar direitos.

Um exemplo dessa inversão: Dilma Roussef foi questionada publicamente por um senador do DEM sobre ter mentido ou não ao seu torturador. Esse senador pretendeu configurar que, se ela mentiu para o torturador, sua palavra não mereceria confiança.  

Quem defendeu aquela pessoa que foi torturada? Quem indicou o absurdo do questionamento? Quem deu a esse senador os epítetos que ele merecia? A classe política, a mídia, os movimentos sociais não tiveram qualquer reação frente a essa agressão. Dilma precisou se defender sozinha e, como se ainda estivesse sendo torturada, se justificou. Respondeu que buscou salvar vidas com as suas respostas ao torturador.

Por que Dilma não “virou a mesa” no Senado? Parece claro que o torturador teria que ser considerado somente o longa manus desse senador e das elites brasileiras que se aproveitam das barbaridades cometidas por quem retira e nega direitos. De algum modo, é possível considerar que o senador seja também o torturador. 

Importante notar a inversão: a crítica era sobre a torturada e não sobre o torturador. O torturador recebe elogios de alguns, mas o que lhe dá maior força e sentimento de segurança é a certeza de que representa ali uma vasta coleção de atores sociais. 

Esse tipo de inversão de valores, que tem como símbolo máximo a figura do torturador, foi a base sobre a qual foi construído o ataque que hoje sofre a democracia no país. No momento atual, a sociedade é chamada a se escandalizar porque o presidente chinga um ministro do STF, mas merece atenção a retirada e negação de direitos que, em última instância tem um efeito de tortura sobre as pessoas que os perdem. Essa negação e retirada de direitos vai desde a falta de reconhecimento pela dor resultante da perda de parentes e amigos, até a fome.

Nossa situação é grave porque a máquina de produzir fome tem o respaldo da maioria qualificada do Congresso Nacional e conta com silêncio sorridente da mídia comercial nacional, ou seja, conta com apoio irrestrito das elites nacionais. Depois de terem apoiado a criação de um enfant terrible, grande parte da mídia conservadora corre atrás do prejuízo que está sendo causado por ele até para ela mesma. Mas, nossas elites, que têm como longa manus em uma hora os torturadores assumidos, em outra hora o ministro da economia de confiança do tal mercado, continua com seus interesses intactos. A lógica de negação e retirada de direitos, materializada no torturador, nunca chegou a ser exorcizada de nós.

Resulta daí que esse ataque se caracterize, em algum momento, no questionamento sobre a importância da democracia para a construção de uma sociedade justa. De fato, os ataques à democracia precisam ainda ser devidamente rebatidos pelo campo democrática popular. A busca de uma radicalidade democrática, como caminho para o reconhecimento dos sujeitos como detentores do direito de ter direitos segue sendo nossa tarefa. 

Como isso se materializou no âmbito da Psicologia brasileira, como ciência e profissão?

Começamos por nos encharcar de luta por direitos, conviver com sujeitos democráticos, nos envolver com cidadãos em luta por direitos. Hoje parece pouco, mas a decisão do CFP de participar de uma caminhada com o MST, ainda no século passado, foi algo retumbante. Foi forte para nós, que estivemos na caminhada, e foi forte na repercussão no seio da profissão. Claro, participamos em nome da Psicologia e fizemos a Psicologia saber que estivemos lá.

Em cada plenária do Conselho Federal de Psicologia e em cada reunião da Assembleia de Políticas, Administração e Finanças do Sistemas Conselhos, convidávamos um ator representativo do Brasil que tinha que dar certo para apresentar uma análise de conjuntura. Podia ser da CUT, do Fórum Nacional pela Democratização dos meios de Comunicação, do MST ou mesmo da academia. Foi numa dessas APAFs que aprendemos com o Marcelo Paixão a distância entre o Brasil branco (que ganhava mais de vinte posições no rank de qualidade de vida) e o Brasil negro (que perdia mais de vinte posições no mesmo rank, em relação à situação que realmente ocupava).

Passamos a participar de quanta articulação houvesse em defesa de direitos de grupos minorizados no país. A resolução 001/99 (que impedia profissionais da Psicologia de prometer curar o que não era doença) compôs o quadro geral dessa atitude de participar não somente por meio de notas de apoio, mas nos dispondo a ombrear com movimentos sociais as suas lutas, sempre na medida exata das possibilidades e limites impostos pela profissão.

O envolvimento na luta pelo fim dos manicômios também se coloca na intersecção da defesa da democracia com a prática profissional. Reconhecer na prática que os chamados loucos são sujeitos de direitos, reconhecer que as práticas levadas a cabo nos manicômios (hoje nas comunidades terapêuticas ou hospitais psiquiátricos que tendem a ser manicômios disfarçados) não têm eficácia e não devem justificar a desumanização das pessoas com sofrimento mental, tudo isso significou a recusa dessa profissão de ficar do lado dos torturadores.

Num outro campo importante que pode ser destacado, reconhecemos as contribuições da Psicologia nas lutas pela garantia dos direitos de crianças e adolescentes no Brasil. A afirmação, perante a sociedade, de que crianças e adolescentes são sujeitos de direitos e, ao mesmo tempo, estão em processo de formação e desenvolvimento, representou uma contribuição essencial, desde a autoridade representada pelo conhecimento da Psicologia. Ao mesmo tempo,recolocou, nos mais diversos espaços da atuação profissional, a abordagem da Psicologia em relação a esses sujeitos, numa perspectiva democrática.
  
Foi impressionante perceber o apoio que a categoria ofereceu a essa possibilidade de contar com um organismo capaz de interpretar seu papel no diálogo entre profissão e sociedade de forma ampla.

Do ponto de vista das articulações no âmbito da profissão, um aspecto que vale a pena apontar se refere ao reconhecimento da diversidade da Psicologia brasileira. A perspectiva de tratar a todos como atores válidos para o debate foi fundamental.

Por exemplo, em cada tema que surgia, reuníamos a expertise existente na profissão, independentemente da abordagem psicológica ou posicionamento político adotado por quem pudesse contribuir. 

Desta dimensão decorria uma outra, também de caráter democrático, que se refere à promoção de processos inclusivos e participativos. Diferentes formas de chamado à profissão foram feitas para que profissionais que quisessem pudessem interferir nos processos e contribuir para sua implementação. Isso permitiu uma multiplicação de atores e a visibilidade sobre suas contribuições.

Vivemos momentos ricos em sinergia no âmbito da autarquia. Cada evento coletivo foi construído garantindo que cada uma das unidades da autarquia pudesse ser chamada, escutada e atendida. Ana Bock fazia reuniões telefônicas semanais com os regionais para construir eventos como o Mídia e Subjetividade, que aconteceu na Praia Vermelha, no Rio de Janeiro.

Isso era projetado também para fora da autarquia. A criação da Associação Brasileira de Ensino de Psicologia (ABEP) estava pronta e madura no âmbito do Fórum Nacional de Entidades da Psicologia Brasileira (FENPB). Mas a assembleia de criação levou quase dois anos para acontecer porque havia uma entidade que resistia a essa iniciativa. Nas reuniões do FENPB cada uma das dúvidas e dificuldades foi tratada de modo a garantir a unidade na decisão, baseada no respeito às diferentes perspectivas.

Uma marca desse método consistiu em que as tarefas a serem realizadas pelas unidades da autarquia não ficassem restritas a conselheiros. Na prática, a maior parte das representações junto a organismos de controle social, por exemplo, era realizada por não conselheiros que eram convidados devido à sua expertise e histórico progressista no tema. Claro, suas posições nos espaços de controle social tinham momento de definição conjunta com os plenários eleitos. Mas mesmo nestes momentos a perspectiva era sempre a de valorizar as avaliações e proposições das pessoas indicadas para a função. Nesse processo, foi possível ampliar significativamente a participação da Psicologia nesses órgãos de controle social, ampliando-se, assim, sua interferência nas políticas públicas de garantia de direitos.

Do ponto de vista dos processos decisórios nos conselhos de Psicologia, houve muitas iniciativas buscando um máximo de exercício de democracia direta e horizontalidade na construção das posições adotadas pela autarquia. Esses procedimentos que já eram comuns no âmbito sindical, foram adotados de forma quase generalizada pelas entidades da Psicologia.

Um exemplo de enorme significado consiste na instauração dos processos congressuais na autarquia. Os Congressos Nacionais da Psicologia consistem em um processo no qual qualquer profissional tem a oportunidade de participar, fazendo propostas e se apresentando como candidato a delegado com direito a voto. São esses Congressos que deliberam sobre as prioridades, ações e diretrizes para a gestão do Sistema Conselhos de Psicologia a cada três anos. Claro, trata-se de um processo político, logo a candidatura e o sucesso de uma proposta vai depender da ação de quem faz a proposição. Essa pessoa precisa buscar a construção de apoio à sua proposta e à sua candidatura, ganhando outras profissionais para a sua tese.

Vale notar que a criação de espaços democratizados exige muito cuidado. A definição do número de delegados para cada base territorial foi feita de modo a impedir que alguma delegação pudesse impor às demais alguma decisão. 

Neste momento estamos vivendo um processo congressual. Há pré congressos acontecendo em todo o país, que vão eleger delegados para os Congressos Regionais da Psicologia (COREPs), que elegerão os delegados para o Congresso Nacional. É preciso indicar que haja, algumas vezes, debilidades na implementação do processo congressual. Há unidades da autarquia que fazem um processo mais formal, tentando manter controle do plenário sobre os resultados dos pré-congressos e dos COREPs. Nestes tempos de pandemia, por exemplo, a escolha das ferramentas tecnológicas podem propiciar ou dificultar a participação da categoria nas decisões. Mas, mesmo isso é passível de questionamentos e resistência.

Há forte reconhecimento hoje na profissão de que as decisões de congressos devam ser respeitadas e implementadas. Praticamente não existem iniciativas de rebeldia de dirigentes de entidades à implementação do que seja estabelecido nos congressos nacionais. 

Abaixo do Congresso, em termos de poder de decisão, encontra-se a Assembleia de Política, Administração e Finanças. Também aqui há uma ênfase na horizontalidade. Todos os cálculos para sua composição foram feitos para que nunca alguma das unidades da autarquia tivesse condições de fazer imposições às demais. 

Agora, algo que merece destaque consiste no modo de eleições praticado na autarquia. A eleição por chapas permitiu uma nova dinâmica na gestão das entidades. Em momentos anteriores, quando a composição do Conselho Federal de Psicologia era feita por indicação de nomes por parte de cada um dos regionais, qualquer disputa política podia interromper a capacidade de ação da autarquia por longos períodos. 

A escolha entre chapas permitiu que profissionais da psicologia focassem nas propostas e plataformas eleitorais ao fazer sua escolha. Além disso, permitiu que profissionais ganhassem instrumentos de cobrança em relação aos resultados eleitorais, uma vez que essas plataformas são distribuídas e podem ser debatidas por todos.

Em síntese, o que se buscou foi que a defesa da democracia acontecesse tanto nos posicionamentos da autarquia, quanto no debate com a sociedade. E que essa defesa devesse, ao mesmo tempo, se desdobrar na produção de sujeitos democráticos no cotidiano das entidades da Psicologia.

O que se buscou foi destacar que cabe à psicologia se fazer presente na luta democrática, apontando o significado de ações como atuação junto a fóruns de lutas por direitos, órgãos de controle social, apoio a movimentos sociais, além do exercício de radicalidade democrática na organização de suas entidades, ações que marcaram um novo posicionamento da psicologia brasileira na virada para o século XXI.

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