Muitos brasileiros podem saber o nome de uma certa flor que desabrocha e fenece em apenas um dia nos alpes suíços, mas normalmente não conhecem o nome das plantas que nascem em suas casas. Isso é considerado por nós como uma dimensão do pensamento colonizado: valoriza o que é do outro e não atenta (ou até despreza) o que lhe é próprio.
Da mesma forma, aprendemos detalhes da história europeia e alguns de nós chegam a aprender até as danças típicas de períodos pré-históricos do continente europeu, mas sabemos pouco sobre a nossa própria história. Não cultivamos nossa história e não temos uma tradição de valorizar nossa memória. E como nos lembra Emília Viotti: um povo sem memória é um povo sem história.
Ivan Lessa piorou o diagnóstico sobre a memória dos brasileiros de modo sarcástico: de 15 em 15 anos, o Brasil esquece do aconteceu nos últimos quinze anos. Para não passar rápido por esta referência vale a pena frisar: a opinião de Lessa é de que os brasileiros simplesmente não lembram daquilo que viveram, mesmo quando se trata de eventos recentes.
Será que isso é verdade? E, se for verdade, por que esquecemos tanto e tão rápido?
Será que nos falta capacidade para lembrar? Seguramente, não! Muitas pessoas são capazes de recitar, décadas depois, a escalação de seu time ou da seleção brasileira em determinado jogo, sem errar.
A desmemória parece estar reservada para assuntos que afetam de forma impactante a vida coletiva ou nacional. Faz lembrar o massacre no romance de Gabriel Garcia Marques: o personagem que sobrevive às atrocidades encontra versões tão consistentes de que não ocorrera o massacre, que ele mesmo começa a duvidar se teria mesmo vivido aquilo, sendo empurrado para a desmemória.
Há uma dimensão importante da desmemória: ela não ocorre necessariamente por um acaso ou por simples “esquecimento”. De algum modo, desmemória é tão impactante quanto a memória para a construção de uma nação. Com a diferença que a memória permite que uma sociedade se reconheça e a memória produz uma imagem distorcida e alienada da sociedade sobre si mesma.
Porque a desmemória pode ser produzida de forma organizada por quem possa administrar os meios que as sociedades e partes dela utilizam para organizar sua memória coletiva, como os meios de comunicação. Consensos são construídos apoiados na produção de desmemória, o que consiste em verdadeira manipulação de subjetividades.
Produção de desmemória pode ter diferentes formatos. Desmemória pode consistir na produção de uma memória alternativa (uma narrativa diversa sobre o acontecido, uma memória falseada) e ela pode consistir na ocultação de aspectos relevantes sobre o vivido. No final, ambos formatos produzem os mesmos efeitos de ocultação e de ocupação de espaço na memória coletiva que comprometa as pessoas com determinadas perspectivas defendidas por quem opera a desmemória. De algum modo, é possível afirmar que todo esforço de ocultação ou apagamento de atores ou fatos carrega consigo um recorte manipulador e com forte recorte fascistóide.
Dentre os meios mais influentes de produção de desmemória (por vezes, por meio da produção de memórias falseadas) estão os meios de comunicação. Mas, não são somente eles. Há parcelas da sociedade que produzem seus meios de criação de cosmovisões por meio de outros tipos de controle sobre a circulação de informação. Tal é o caso, por exemplo, da formação de oficiais das armas brasileiras. As escolas que oferecem essa formação conseguiram atravessar o processo de democratização vivido pelo Brasil, sem incorporar os debates travados pela sociedade e, passados quase trinta anos do fim da ditadura, encontramos profissionais adultos repetindo o mesmo tipo de discurso propagado antes do golpe de sessenta e quatro.
Há uma peculiaridade contemporânea nesse tema da manipulação das subjetividades pelos meios de comunicação que precisa ser considerada como central. Nestes tempos as tecnologias baseadas na chamada inteligência artificial permitem quase a criação personalizada de cosmovisões.
Infelizmente já não podemos contar com Celso Pereira de Sá e Ecléa Bosi, num debate sobre aspectos psicossociais nos estudos sobre memória, focando os problemas que vivemos hoje.
Para além de reconhecer a influência dos meios de comunicação na construção de consensos sobre o que se passou, vale a pena considerar a forma como se organiza a atribuição de sentido aos eventos e o encaixe da perceção do passado nesse processo, do ponto de vista psicológico. Porque a atribuição de sentido a um evento presente ocorre por meio de um alinhamento encadeado entre a memória e a expectativa futura sobre esse acontecimento.
Assim como no livro 1984, de George Orwell, o que se observa nos mecanismos de produção de memória e desmemória é uma verdadeira disputa sobre o que seja reconhecido como o passado pessoal e coletivo. Uma disputa pelo estabelecimento daquilo que as pessoas podem e devem se lembrar.
No caso brasileiro os exemplos pululam. Um dos mais recentes se refere à ausência de informação sobre o Intercept na Rede Globo. Uma atuação jornalística que mereceria premiação em qualquer parte do mundo e que teve enorme repercussão na vida política nacional, simplesmente não existiu para a Globo e sua audiência.
Os estragos são grandes e importantes sobre o modo de apreensão da realidade, a partir de algum controle sobre o estabelecimento de memória e desmemória. Vale a pena atentar para as pesquisas do Instituto Ipsos que apontam que, quase sempre, os brasileiros erram muito sobre informações importantes acerca da vida nacional. Por exemplo, ao responder sobre a participação de crianças e adolescentes em atos infracionais, os números são sempre superestimados. Frente aos números reais fica impossível compreender o porquê de haver campanha para redução da idade penal, como está sendo feita neste momento pela Rede Bandeirantes.
Também este é o caso da ocorrência de gravidez na adolescência, assunto em que as respostas de brasileiros é o mais equivocado entre os quarenta países pesquisados pelo Instituto Ipsos. E o erro é grosseiro: a média de mulheres que dão à luz entre quinze e dezenove anos é de cerca de seis por cento da população feminina, mas as respostas foram, em média, de quarenta e oito por cento. Uma percepção oito vezes maior do que a realidade.
Do ponto de vista da experiência que tivemos na gestão de iniciativas no âmbito da Psicologia, o estabelecimento de memória coletiva implica em disposição de oferecer reconhecimento em relação às contribuições dos diferentes atores, independentemente da nossa relação com eles. Quando há falta de reconhecimento, se produz desmemória.
No caso da Psicologia brasileira, a partir do momento em que houve disposição de produzir reconhecimento, pudemos desencadear diferentes iniciativas de resgate da memória da profissão e da ciência.
Um primeiro momento que marcou essa perspectiva aconteceu ainda em 1997, na comemoração do dia da criação da profissão. Naquele momento onde não existia as facilidades de comunicação pela Internet, foi algo impressionante do ponto de vista tecnológico. A festa foi transmitida ao vivo, via Embratel, com inserções de imagens de diferentes pontos do Brasil e de sinal de áudio de diferentes pontos da América Latina.
A festa tinha que ser grande, porque pela primeira vez iríamos homenagear profissionais de diferentes áreas, diferentes abordagens, diferentes visões políticas, de diferentes regiões do país. Ninguém importante foi silenciado, a não ser por opção da própria pessoa de não participar da festa.
Nessa linha do reconhecimento e do resgate da memória foram muitos os projetos. Em um deles, foram produzidos vídeos e livros a partir de entrevistas com pioneiros da Psicologia no Brasil, tanto da ciência quanto da profissão.
Foram cerca de duas dezenas de atores que tiveram suas imagens registradas contando o que achassem importante, desse banco de imagens foram produzidos vídeos sobre cada um deles e, a partir de quase todas as entrevistas foram editados opúsculos sobre eles.
Muita coisa interessante ganhou visibilidade a partir dessas entrevistas. Um exemplo pode ser apontado em relação a gênero: em quase todo o país, as mulheres foram predominantes no papel de proa na construção de espaços e iniciativas da Psicologia, menos no Rio de Janeiro. No Rio nós contamos com forte participação de homens nessa construção. Outro exemplo, em relação a posicionamento político: mesmo sempre tendo havido um consenso de que a Psicologia tivesse um recorte conservador, mas os exemplos de profissionais engajados numa visão progressista foram vários, como no caso da Madre Cristina e, de novo, de profissionais do Rio como Seminério, Schneider e Penna. Sabíamos pouco disso, talvez porque tenham sofrido algum tipo de silenciamento.
O projeto Memória não era uma tentativa de produzir história. Tratou-se de uma coleta de memórias que ficou à disposição de historiadores para a construção de uma visão compreensiva sobre o desenvolvimento da ciência e profissão no país.
O principal objetivo da coletânea dos Pioneiros foi estabelecer uma percepção e um sentimento sobre a longevidade que a Psicologia tinha no Brasil, mas não compunha a memória coletiva. Percebíamos um consenso de que não tínhamos uma história, o que facilitava uma impressão de que nosso desenvolvimento sempre começava no exterior.
Assim como foi importante criar a Mostra de Práticas e os Congressões, para possibilitar uma visão da beleza, grandeza e diversidade da Psicologia no país, o projeto memória trazia um elemento de estabelecimento de ancestralidade. Aliás uma anterioridade que não vinha com a marca exclusiva do conservadorismo, que aparecia em diversas outras dimensões.
Neste assunto vale a pena apontar uma questão de método. Ao criar o projeto, a primeira providência foi de publicar um edital aberto anunciando a possibilidade de recebermos propostas de interessados em produzir imagens, vídeos e livros sobre pioneiros.
As iniciativas de resgate da memória tiveram influência nas práticas de outras iniciativas. Por exemplo, a cada quatro anos, na abertura do Congressão, acontecia um registro e uma homenagem aos profissionais de referência para a ciência e para a profissão que perderam a vida no período anterior. Um momento de emoção e lembrança, com projeção de imagens das pessoa que eram alvo de saudade e respeito. O mesmo tipo de registro passou a acontecer na Revista Psicologia Ciência e Profissão.
Uma iniciativa que causou muita repercussão e que parece que serviu como chave para todo processo, foi um cartaz que publicamos com uma linha do tempo da Psicologia. Essa linha do tempo cobria cem anos de história e tornava explícita essa ideia de desenvolvimento de larga duração. Até recentemente, não era raro encontrar esse cartaz emoldurado na parede dos cursos de Psicologia que visitávamos antes da pandemia.
Na mesma perspectiva de resgate da memória coletiva e construção de reconhecimento, foram editados livros de profissionais da Psicologia e de pensadores que lançaram mão do conhecimento psicológico nas primeiras décadas do século vinte. Autores como Helena Antipoff, Manoel Bomfim, Lourenço Filho e Arthur Ramos, tiveram títulos publicados nesta iniciativa.
Manoel Bomfim mereceu um esforço especial e destaque nesta iniciativa. Seu progressismo, seu combate ao pensamento colonizado, seu feminismo, sua exigência de que o método da Psicologia (e não só os seus conteúdos) fossem utilizados no Brasil, fizeram de Bomfim invejável mesmo nos dias atuais. E tudo isso, na virada para o século vinte.
Um outro projeto marcante dessa perspectiva extrapolou a noção de memória, porque foi produzido por profissionais com apego ao método historiográfico. Ele consistiu na publicação de dicionários da Psicologia brasileira. O primeiro deles teve um recorte biográfico. Esse dicionário estava praticamente pronto para publicação, foi organizado pela Regina Helena Campos, juntamente com o grupo de História da Psicologia da ANPEPP.
Esse é outro exemplo dos procedimentos adotados naquele período: o grupo da ANPEPP foi convidado (e aceitou) colaborar com o projeto memória do CFP. A iniciativa do CFP viabilizou sua rápida publicação e difusão no país.
O segundo dicionário focou nas instituições brasileiras da Psicologia e foi publicado já fora do período coberto pelos nossos programas sobre a virada da Psicologia. Ele foi organizado pela Ana Jacó-Vilela e contou com importante aporte financeiro do CFP para sua elaboração.
Essa atenção ao resgate da memória coletiva e, algumas vezes, da história da Psicologia se desdobrou em iniciativas de registro importantes do ponto de vista da constituição de uma comunidade nacional da Psicologia. Se naquele momento da virada do século essas iniciativas foram tomadas pelo Conselho Federal, é preciso contar que em muitas regiões iniciativas semelhantes foram tomadas. Dezenas de outras publicações foram apresentadas à comunidade da Psicologia principalmente pelos Conselhos Regionais.
Até mesmo a linha do tempo, que na virada do século era um cartaz, em São Paulo se tornou um projeto de longa duração, com publicação muito completa no sítio do CRP na internet. Uma das principais expansões dessa linha de ação foi a inclusão de publicações de resgates temáticos, como no caso das relações étnico-raciais.
O fato é que as iniciativas desenvolvidas deram um impressionante impulso aos esforços dirigidos ao resgate da memória da Psicologia no país e estabeleceu material importante para o trabalho de nossos historiadores.
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