Prepare o seu coração para as coisas que eu vou contar.
A América Latina, com forte protagonismo do Brasil, viveu um acontecimento único na história econômica do mundo: redução da desigualdade social sem guerra, fome ou peste. Essa anotação é do historiador Walter Scheidel em seu livro sobre a história da desigualdade social. Segundo o pesquisador, na história das humanidades somente eventos traumáticos produziram redução de desigualdade.
A exceção reconhecida a essa tendência histórica consiste nas duas primeiras décadas deste século e se localiza na nossa região do planeta. Essa é uma exceção no longo período histórico considerado: da idade da pedra até o século vinte. Exceção tênue, devido à sua curta duração.
Dá para entender o por que do mercado, os grandes capitalistas e seus sequazes (incluindo Obama) terem considerado ser preciso interromper o processo civilizatório humanizador que estava em curso entre nós. Por que foi preciso derrubar alguém da presidência e encontrar um juiz falsificador para mandar prender quem poderia prolongar essa exceção.
É com prazer que reconhecemos e afirmamos que a Psicologia brasileira tenha tido uma parcela de contribuição na criação dessa exceção histórica. Neste conjunto de programas sobre a virada da Psicologia na virada do século vinte e um, nós fizemos um resumo das iniciativas que marcaram um crescimento da Psicologia brasileira sob a égide do projeto do compromisso social.
Aliás, este é um orgulho que compartilhamos com os milhões de brasileiros que apoiaram de diferentes formas o processo civilizatório humanizador que estava em marcha no país. Milhões que se recusaram a legitimar em 2018 a ruptura do golpe de 2016 (e são quase dois terços da população brasileira). Milhões que não aceitaram e não aceitam o embrutecimento de espíritos que está sendo realizado todos os dias por esse governo devastador. Todos nós podemos parafrasear o poeta que escreveu Confesso que vivi. Cada um de nós pode dizer: confesso que participei! Participei da única experiência de redução da desigualdade social em todas as histórias de todas as humanidades.
Então, todas as iniciativas que apresentamos nesses programas têm um pouco desse gosto de “confesso que contribuí”. Mas todos os programas tiveram como sustentação a certeza de que o Brasil tem dívidas históricas com seus cidadãos, notadamente com o povo negro e com os povos originários. A rigor, são iniciativas que desdobram no âmbito da Psicologia esse reconhecimento das dívidas históricas da nação brasileira, no sentido de que a profissão e a ciência reconheçam ter também a sua parcela de dívida com o povo brasileiro.
A tese do compromisso social, que foi também uma consigna, se tornou a base para o projeto de profissão desenhado na virada do século. Tanto a tese quanto a consigna foram estabelecidas a partir desses enquadres.
No debate sobre sua relação com a sociedade brasileira, além de considerar essas dívidas históricas, é preciso reconhecer que a Psicologia tem outras obrigações que, com enorme facilidade, podem passar despercebidas e até negligenciadas. De fato, a todo momento são apresentadas questões à Psicologia que, em grande parte das vezes, ficam sem resposta ou com respostas insuficientes.
Ao mesmo tempo, percebemos que nunca a Psicologia e o pensamento psicológico tiveram tanto espaço no debate social, como têm hoje. Tal é o caso da situação vivida na pandemia, como veremos a seguir.
Pandemia
A lista de temas em que o conhecimento psicológico e a contribuição de profissionais da Psicologia foram requisitados é extensa, a começar pelas provocações que foram feitas no início dos cuidados com a chegada do vírus corona ao país. Naquele momento, profissionais da Psicologia foram chamados a contribuir no debate sobre as formas de lidar com essa ameaça, notadamente com foco nas medidas de isolamento e distanciamento social.
Desafortunadamente, grande parte das contribuições ficaram restritas a sugestões de como organizar rotinas e cuidar da auto-estima, aspectos talvez importantes, mas claramente insuficientes para lidar com o maior desastre, a maior catástrofe que o país e o planeta tinham vivido em cem anos. A despeito da enorme construção da Psicologia no enfrentamento de desastres (inclusive no Brasil), nem mesmo o caráter desastroso do vírus corona foi reconhecido no debate.
Note-se que nas contribuições de colegas, pouco foi aduzido ao debate em termos da importância de promover práticas de solidariedade como forma de fortalecer a saúde mental. Menos ainda no sentido de promover espaços de luto coletivo para reconhecimento, legitimação e processamento das emoções advindas de eventos que iam desde a perda de entes queridos até o simples medo de alguma manifestação física poder ser indicador de contágio pela COVID.
Numa perspectiva mais arrojada, é possível afirmar que não houve praticamente contribuição da Psicologia para a construção de atores sociais representativos para enfrentar as démarches de governantes que resolveram rivalizar nas disputas políticas. Ou, numa perspectiva ainda mais arrojada, não aconteceu a indicação da possibilidade de o momento da pandemia ser apropriado pela Psicologia e pelos movimentos sociais para difundir teses solidárias.
O fato psicológico mais desconsiderado consiste em que há pessoas que sentem nostalgia em relação aos dias vividos em meio a um desastre. Porque sabemos que, em meio a desastres, pode acontecer tanta solidariedade que as pessoas ficam impactadas e chegam a sentir saudades dos dias em que viviam momentos terríveis.
Parece que perdemos uma oportunidade de mostrar o que a Psicologia pode fazer. Mas além disso, como compreender que a CPI da COVID não tenha sido objeto de debate contínuo e sistemático no âmbito da Psicologia? Ali ficou desnudado o jogo feito com as subjetividades de milhões de brasileiros. Ficou a olhos nús um malbaratamento das dimensões psicológicas da vida dos brasileiros que impactou toda uma geração. Mas nos mantivemos distantes da CPI da COVID. Os advogados se organizaram e foram oferecer ajuda à CPI, mas nós não.
Importa dizer, a somatória de extrema-direita, de terraplanismos, mais a desatenção ao trabalho da ciência é que foram mais capazes de aproveitar a pandemia para crescer. Fizeram todo tipo de manifestações e iniciativas destinadas à criação de resistência a projetos civilizatórios humanizadores.
Seria momento ainda de as entidades da Psicologia se organizarem para apresentar um exame dessa situação, apresentando à sociedade propostas de avanço nas teses humanizantes. Até porque a pandemia ainda não acabou. E mais ainda, porque o sucedâneo do destrato com a pandemia na produção de sofrimento brasileiro está aí: a insegurança alimentar atingindo mais da metade da população brasileira e havendo cerca de dezenove milhões de brasileiros, incluindo crianças, sem terem o que comer.
Seguramente não há outro assunto mais urgente para a Psicologia. Pandemia e fome exigem de nós atenção e ação imediatas. Mas, o assunto mais importante para a Psicologia no Brasil e no planeta ainda é outro.
Inteligência artificial
A manipulação das subjetividades por aparatos e processos baseados na, assim chamada, inteligência artificial é esse mais importante que está a exigir a contribuição da Psicologia. Pululam os documentários, depoimentos e estudos sobre o uso de conhecimento psicológico, sobre o jogo com dimensões psicológicas, sobre o trabalho de profissionais da Psicologia na produção de ferramentas opressivas, mas ainda damos insuficiente atenção a esse tema como ciência e como profissão.
A possibilidade da escolha de uma informação específica, destinada para uma pessoa específica, em um momento específico da sua vida nunca tinha sido possível antes do advento da chamada inteligência artificial. Os exemplos de manipulação de subjetividades que essa possibilidade produziu no BREXIT, na eleição de Trump e na eleição de Bolsonaro, são suficientes para compreender a urgência e importância de que a Psicologia produza uma contribuição que será fundamental para o desenvolvimento social.
Como tecnologias novas, as aplicações de algoritmos na modulação de informações ainda têm características selvagens. Essas tecnologias não foram ainda adequadas aos padrões humanos de convivência. Toda a sociedade tem a tarefa de impor um sentido humanizador a essas tecnologias e a Psicologia tem um papel de destaque nesse processo.
Colonialismo digital
Os riscos e problemas produzidos por essas tecnologias se multiplicam por terem sido apropriadas pelas poderosas plataformas que são chamadas de GAFAM (Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft). As consequências dessa apropriação indébita são enormes e, se não houver resistência da sociedade, serão de longo prazo.
Por que indébita? Porque nenhum dos bilionários da computação fez qualquer contribuição para a sua construção. Nunca acrescentaram um detalhe no arcabouço teórico que sustenta suas plataformas.
Tudo o que existe em construção de ciência computacional foi feito, principalmente, com recursos públicos em diferentes países. Logo, estamos falando de um patrimônio coletivo das humanidades que foi indebitamente apropriado por um punhado de mercadores ou mercadejadores. Não tem o menor sentido que essas tecnologias sejam apropriadas por um grupelho de empresários que, além de tudo, ainda se utilizam e impõem um modelo de negócios predador.
Eles simplesmente não têm o direito de utilizar essas tecnologias ao seu bel prazer. Não têm o direito de utilizá-las para suas posições políticas. Não têm o direito de colocá-las a serviço do seu projeto de recolonização do mundo pelo meio digital.
Por que recolonização? Porque está claro que nossas intimidades são capturadas pelos aparatos tecnológicos, transformadas em dados que são levados para fora do país como commodities, processadas da forma como lhes interesse (o nome dado por estudiosos é “mineração”) e, depois, são vendidas para nós mesmos, os atores brasileiros. A lógica colonialista é tão forte que cresce no mundo a jurisprudência de que nós não temos direitos sobre os nossos dados. O plano de expansão das GAFAM é agressivo, eles sabem que têm pouco tempo para a rapina e se empenham ao máximo para expropriar as intimidades de um máximo de pessoas ao redor do planeta.
E eles são severos com quem os critica. Além de contar com advogados impagáveis para defendê-los nas cortes, se dão ao direito de cancelar páginas e espaços, de dirigir a atenção de seus usuários do modo menos escrupuloso e simplesmente calar aqueles que lhes interessa. Sempre com as desculpas tecnológicas mais desconcertantes. A mais importante é que eles não sabem por que o algoritmo faz o que faz. Que os algoritmos são incontroláveis. Caberia um desafio: se um algoritmo começar a dar prejuízo para seu proprietário, o que será que vai acontecer com ele?
Então, estabelecer um sentido humano tanto para as tecnologias quanto para o modelo de negócios que as manipula é tarefa para toda a sociedade e a Psicologia tem que se preparar para oferecer sua contribuição. Porque até mesmo a leitura e compreensão dos processos que estamos vivendo no planeta ficam toldadas sem uma contribuição importante do saber psicológico.
Fake News
A falsificação dos fatos e narrativas precisa virar tema importante para a Psicologia. Ela não é inerente ao uso das tecnologias computacionais, nem está restrita aos grupos da extrema-direita. Corremos o risco de a falsificação se transformar em padrão para a nossa sociedade, tão forte é a sua penetrância nos processos que vivemos. Uma materialização dessa falsificação e que demanda a contribuição da Psicologia, consiste nas chamadas fake news. O enfrentamento dos riscos produzidos pelas fake news e pela já prometida nova onde de enganação da população, a chamada deep fake, vai exigir nossa atenção e contribuição.
Trata-se de uma dupla falsificação. Chamar de fake news já traz embutida uma falsificação. Em outro momento, enfrentamos a Rede Globo e os meios de comunicação que produziram por décadas a manipulação da informação. É fácil lembrar o esforço da Globo no ano de 2018 para dar nome às notícias falsas que corriam pelo WhatsApp. O falso jornalismo seria aquilo que chegava às pessoas através dessa plataforma. Oras, hoje mais do que nunca sabemos que a maior produção de falsificação do jornalismo ocorre na Globo. Super homens e diabos são criados ao gosto do conglomerado da família Marinho. Assuntos, como o incrível trabalho jornalístico do Intercept, são simplesmente ocultados.
Mas, a falsificação patrocinada pela extrema-direita não é menos perigosa e, somada ao uso das novas tecnologias de manipulação, ganham peso nas definições tomadas pela sociedade brasileira. Focada na produção de ódio que dê sustentação ao sofrimento que ela mesma produz, seu foco na produção de dissenso e agressividade consegue prosperar.
O reconhecimento e interpretação desses processos precisa fazer parte do cotidiano da Psicologia. Ainda mais no momento em que vem aí uma onda que está sendo chamada de Deep Fake. Isto é, uma falsificação que nem vai mais precisar se travestir de jornalismo. Só de pensar nas novas tecnologias de realidade virtual, cresce a preocupação com o que esteja sendo organizado por esse exército de falsificadores para o ano de 2022, agora sob o silêncio e falta de iniciativas de Alexandre Moraes.
Racismo e desigualdade social
A produção de consensos que nos engolfam e delimitam nossas subjetividades é outro assunto urgente de ganhar atenção da Psicologia. Um grupo de psicólogos sociais propôs uma tática para contribuição ao debate social sobre as desigualdades. No livro Reconstruir a democracia, organizado por Aldo Arantes, foi proposta a tática de lidar com os consensos que nos envolvem cotidianamente como uma chave de análise acessível para pessoas pouco afeitas aos conceitos psicológicos.
Começamos apontando que uma dimensão que salta aos olhos no exame das subjetividades e modos de atuar dos sujeitos brasileiros, consiste na convivência com um nível de desigualdade social chocante se olhado com com um mínimo de distanciamento. Numa sociedade que parece viciada em exclusão de seus cidadãos, vale reconhecer como desvelador o tratamento dispensado à população negra e às mulheres no Brasil.
Por um lado, há verdadeira guerra declarada aos jovens negros. No período de durração do nosso programa com o Conde, três jovens negros terão sido mortos no país. Essa situação não acontece de modo isolado, não nos esqueçamos nunca do estudo realizado por Wânia Sant'ana e Marcelo Paixão (1997), trabalhando nos dados do censo brasileiro. Eles fizeram duas simulações: 1) tomando os critérios do Índice de desenvolvimento humano, que posição o Brasil ocuparia no ranque mundial se todos os brasileiros tivessem as mesmas condições que brancos tinham naquela época no país?, 2) e que posição o Brasil ocuparia no mesmo ranque se todos vivessem nas mesmas condições que os brasileiros negros naquele momento?
O resultado dessas simulações foi chocante: no ranque internacional o “Brasil branco” se distanciava em cinquenta e cinco posições do “Brasil negro”. Isto é, teríamos brasis inaceitavelmente diferentes se todos os brasileiros vivessem nas condições estabelecidas para seus cidadãos brancos ou se todos os brasileiros vivessem nas condições acessadas pelos cidadãos negros.
Ao mesmo tempo, as mulheres são alvo de um nível de agressividade inacreditável. Para além de, em quase todas as profissões e ocupações, serem subalternizadas e sub-remuneradas, grande parte das vezes elas não ficam totalmente imersas nas sombras do indispensável, mas não reconhecido, trabalho doméstico. E essa agressão pode chegar a situações extremas como dos feminicídios e violência sexual. Na vida das mulheres brasileiras a ocorrência de diferentes tipos de assédio é algo tão presente que chega a ser naturalizado de forma generalizada na compreensão de cidadãos e cidadãs.
A grande maioria dos brasileiros considera possível e normal a existência de favelas, admissível que milhões de pessoas vivam no tecido urbano sem acesso a água corrente e com esgoto correndo a céu aberto com crianças brincando ao seu redor. A maioria de nós aceita que um jovem seja chamado ao portão e fuzilado na frente da sua família, ou que pessoas precisem saltar cadáveres ao sair de casa, a depender do bairro em que tenham “escolhido” morar.
Dá para imaginar o nível de alienação em que precisamos viver para suportar, sem nos desesperarmos todos os dias, diante de tão penetrante, generalizada e intensa desigualdade? O fato é que, como brasileiros, aceitamos essa desigualdade em nosso país. O fato é que a informação sobre a morte de um jovem negro ou de uma esposa causa indignação limitada em nós. A consciência de que haja pessoas passando fome, vivendo sem casa ou em casas que são falsificações de construção habitacional, não nos tem colocado em campo para a busca de mudanças drásticas e imediatas.
A aceitação dessa desigualdade como natural corresponde a um dos consensos de maior impacto e penetrância estabelecidos no país. Esses consensos precisam ser identificados e colocados em cheque pela Psicologia. Precisam ser desconstruídos em favor de novos consensos, que apontem para a construção de um processo civilizatório humanizador.
No episódio passado, apontamos para a necessidade de acatarmos a convocação de maio de 68 e exigirmos o impossível.
Neste episódio, nossa intenção é de apontarmos para a necessidade de exigirmos o que já sabemos ser possível. O Brasil viveu por mais de uma década um processo de inclusão social e redução dos impactos da desigualdade social. Nós sabemos que isso é possível. Por que não conseguimos estabelecer novos consensos? Pode ser, ao menos em parte, porque tenha se esvanecido a ousadia da Psicologia para reconhecer sua presença nos processos sociais, sua responsabilidade para com a sociedade brasileira e sua dívida histórica com o povo brasileiro.
A Psicologia precisa retomar sua ousadia e dizer junto com o Vandré: “a morte, o destino, tudo estava fora de lugar. E eu vivo pra consertar”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário