terça-feira, 27 de março de 2018

A morte do fato, por Gustavo Conde

"Contra fatos não tem argumentos". Eu ando meio injuriado com essas expressões populares. Elas são motores violentos de perpetuação de poder, enunciados saídos diretamente da opressão, do esmagamento, da subserviência, da conformidade, da paralisia.

Pergunte a algum acionista de bolsa de valores se ele acredita nessa premissa. Ele lida exatamente com seu contrário. Porque ele sabe que os mercados oscilam ao sabor dos argumentos dispersos mundo afora. Uma fala mal formulada de um ministro pode fazer as ações de uma gigante do petróleo perderem 40% de seu valor num único dia. E aí? Quem determina quem, o fato o argumento ou o argumento o fato?

Calculem o que é uma expressão popular que atravessa os séculos - e que portanto foi espontaneamente formulada por uma sociedade de 200 anos atrás, mais ou menos. Não pode ser portadora de alguma "verdade", senão por sintoma. Ou: são ditos que visam preservar o controle de quem já controla, com imenso viés patrimonialista.

É a mesma função das histórias infantis ou das fábulas. João e Maria se perdem na Floresta e uma bruxa quase os devora. Portanto, "não saiam na floresta, crianças". As histórias infantis são até mais sofisticadas. Os adultos, séculos afora e adentro, fazem um papel muito mais passivo e dócil diante das narrativas de controle social. Uma criança - graças a Deus - ainda sai na floresta. Ela tem algo dentro de si chamado "curiosidade". 


Todos os provérbios e expressões populares guardam essa função social de controle e submissão. Chico Buarque rompeu com essa lógica em sua canção "Bom Conselho". "Inútil dormir que a dor não passa", "quem espera nunca alcança", "aja duas vezes antes de pensar". Os originais são cápsulas da conformidade social e política. As corruptelas chamam a atenção para isso.

A sabedoria popular tem esse componente de paralisia. Por isso, os espertos, os detentores dos meios de produção, os aristocratas, os senhores, os proprietários de gente, nunca se importaram com os ditados populares. Eles construíam uma vida rasgando tudo por onde passavam. Por isso, sempre estiveram por cima, no que diz respeito a patrimônio e a aparelhamentos dos institutos de poder. Eles ignoram a história do fato e do argumento.

Separar fato de argumento também é um exercício de vilania aplicada. O que é um fato? Defina fato. Não há, na face dessa terra, algo que seja desconectado do observador. Até Einstein entendeu isso - e, por isso, formulou a hipótese mais sofisticada da astrofísica.

Isso significa que o argumento produz o fato. Fato é uma palavra-coringa. Ela não quer dizer basicamente nada - e pode dizer potencialmente tudo. É uma muleta retórica, um brinquedinho que faz a alegria de jornalistas e historiadores quando de posse de suas narrativas tomadas pela deliciosa subjetividade que nos torna a todos humanos.

Não há porque chorar a morte do fato. Talvez, pudéssemos ressignificá-lo: fato é aquilo que me escapa. Fato é o outro. Fato é o que não é codificado por mim.

A morte do fato pode ser definida como uma fatalidade. Fatalidade vem de fato e em fato se desintegra. Fatalidade é algo que acontece sem a minha autorização. A palavra e o sentido de fatalidade são a comprovação empírica de que o fato é uma ilusão provocada pela minha percepção de mundo, que pode ser argumentativa ou não.

Minha percepção pode ser um mero espasmo significante, um suspiro, um arfar vazio e precoce, mergulhado em zonas de silêncio e rastros de enunciados imemoriais. O mundo só é quando eu sou. Não há sentido sem o sangue significante. As veias do significado histórico por onde ele corre nos legaram a palavra "fato", um corolário de sua existência frágil e capilarizada.

Fato é metáfora. A língua é um fato. O discurso, a dicção, o ethos, o registro. Dizer fato é dizer sim. "Fato". Dizer para não dizer é também um fato. Qual força gera essa fatal vocação do sujeito para se interditar a si mesmo e dizer que "contra fatos não há argumentos"?

Nelson Rodrigues foi precisamente factual quando disse: "se os fatos estão contra mim, pior para os fatos". Os fatos são a realidade forjada pelas instâncias de poder. Por isso, a trepidação na imprensa que perdeu a primazia de ordenar e organizar os "fatos" de acordo com a origem de sua receita publicitária.

O fato se estilhaçou. O fato não tem mais dono. O fato é meu e seu. O fato não é mais fato. O fato virou argumento. Melhor um fato na mão do que dois argumentos voando.

Factum. Feito. Émile Durkheim. Ação, trabalho, obra, feito. Faccere. Roupa, trajo, vestuário, vestimenta, traje, rebanho, manada, intestino de qualquer animal, vísceras do gado, ação, coisa feita, fazza, factu. Acontecimento.

Eis a palavra que toma meus sentidos de maneira plena e convincente para as vissicitudes do real: acontecimento. A ideia de acontecimento é muito melhor que 'fato'. Obina é melhor que Eto'o e acontecimento é melhor que fato.

Fato é que os provérbios, ditados e expressões precisam de um recall. Não dá mais para se andar nessas carroças discursivas. Que virem peças de museu, devidamente reverenciadas e sacralizadas. O cotidiano antirracista, anti-escravocrata, antiviolência, antiparalisia, antimordaça quer algo mais, quer memes inteligentes, que intertexto, quer trepidação, inovação, sentenças novas com palavras velhas.

Afinal de contas, água mole em pedra dura tanto bate até que seca.

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