Não somos iguais a eles, dizia o escravo que se opunha à rebelião. Eram 40 peças, 30 homens e 10 mulheres (as crias não contam), gabava-se o casal de brancos proprietário, gerenciados por um preto de alma branca a serviço dos donos da fazenda, lá nos cafundós. Seria fácil. Não precisariam de armas. Uma porretada bem dada na cabeça deles e acabaria, pelo menos por um tempo, o martírio daquelas quarenta almas, com castigos físicos e estupros. Mas não eram iguais a eles. Eram bons.
Não somos iguais a eles, dizia o progressista admoestando um incauto que se saiu com um tomara que morra ao saber que determinada peruca encimava um contagiado sem escrúpulos pelo vírus. Somos moralmente elevados, resistimos a nos deixar contaminar pela humanidade que anda a pé ou em transportes coletivos de massa. Não podemos nos igualar a eles. Não podemos, somos diferentes.
Não somos iguais a eles, não podemos impunemente sorrir ao ver o vídeo onde periféricos jogam futebol tendo por bola uma realista cabeça de borracha de um jaguara. Nós somos melhores que eles, violência não leva a nada. Não nos igualemos.
Somos boas pessoas. Pacifistas. Temos pena dos cachorros dos mendigos que se abrigam sob as marquises do deteriorado centro da cidade, tão magros, perebentos. Temos pena deles também, claro, mas os cachorrinhos, coitados, são de cortar o coração. Adote um pet.
Viram a onça com as patas queimadas? Um horror. Alguém tem que fazer alguma coisa. Ninguém vai fazer nada? Eu faço minha parte: parei de comer carne. A transformação tem que começar a partir de cada um. Para mim tem que ser tudo orgânico. Não existe o que vocês chamam de povo, o que há é indivíduos. Não somos iguais a eles, comecemos a mudança de tudo isso que está aí a partir de cada um de nós. Já experimentaram fazer meditação? Rezar também ajuda.
Não somos iguais a eles. Não podemos convocar os trabalhadores para manifestações públicas. Os gringos do black lives matter são irresponsáveis. Ir às ruas, aglomerados só por causa de um I can’t breathe? Só bolsonaristas rompem o distanciamento social. Os movimentos sindicais e populares não podem se igualar a eles. As redes sociais bastam, o mundo mudou. Notas de repúdio e abaixo-assinados haverão de ser eficientes. Mas sempre com bons modos, elegantes. Não somos iguais a eles. Carinho e empatia!
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Há quem não seja pessoa boa, não seja igual a eles e nem igual aos outros eles, que não querem se igualar àqueles. São esquisitos.
A continuar como está, seremos todos abatidos como as onças pintadas, aqui na Selva de Pedra. Posso até sentir a dor na alma...
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