sexta-feira, 22 de outubro de 2021

Combate ao pensamento colonizado, por Ana Bock, Marcos Ferreira e Graça Gonçalves

Teve reduzida repercussão o fato do presidente brasileiro bater continência para a bandeira dos Estados Unidos. Num filme de guerras antigas, isso seria o mesmo que ajoelhar-se frente a um invasor estrangeiro. 

Da mesma forma, chama pouca atenção o culto prestado a autores estrangeiros no nosso meio, como se quiséssemos pertencer à intimidade desses autores.

 

De fato, quem ingressa no mundo da universidade parece estar entrando em outro país. É como se essa pessoa precisasse aprender um idioma, aprender modos de se comportar e a forma adequada de dizer as coisas. Nesse momento somos todos educados a aceitar uma instituição inventada em outra realidade, com procedimentos que foram transferidos de outros países. E tudo isso num ambiente de extrema valorização dessa coisa que veio de fora do nosso país.


Essa distância entre o mundo cotidiano e o mundo da academia costuma ser acompanhada por um tipo de desprezo pelo que nos é comezinho. Essa distância e esse desprezo são tão fortes que Dunker apontou que essa diferenciação nos modos de relação com o pensamento sistematizado possa ser uma das origens para o próprio negacionismo, que tanto criticamos. Na sua perspectiva, ao negar o pensamento sistematizado, pessoas podem estar tentando equilibrar suas possibilidades de se sentir atores válidos no debate social.

Mas essa valorização extrema do ambiente acadêmico que foi importado é só uma dimensão pequena de algo que chamamos de pensamento colonizado. O maior impacto acontece na extrema valorização do pensamento de autores estrangeiros que acontece no interior das universidades. No caso da Psicologia essa valorização transparece de forma chocante, por exemplo, no incentivo e até pressão para que ocorra adesão de estudantes a esta ou aquela corrente psicológica. Logo nos primeiros meses de curso o estudante deve “escolher” uma abordagem. É algo até caricato, assim como os alunos de medicina devem portar um estetoscópio, mesmo que ainda não saibam bem utilizá-lo.

Alguém já apontou que vivemos citando estrangeiros, tentando compreender estrangeiros, talvez, tentando ser estrangeiros. Já ficou claro que, para um brasileiro ou latinoamericano fazer sucesso por aqui, ele tem que ser apresentado a nós por algum europeu ou estadunidense. Mas isso não se restringe a alunos de graduação. Pode acontecer de alguém fazer um doutorado, utilizando exclusivamente autores estrangeiros. Por exemplo, alguém escrever uma tese de quinhentas páginas, só para provar que entende um autor estrangeiro. 


Aí chegamos ao que deve ser considerado como um caso grave de pensamento colonizado. Há aprendizados desenvolvidos em outros contextos que são tratados como transplantes, isto é, nem sequer são “climatizados”, são empregados aqui a despeito de terem sido produzidos a partir de (e para serem aplicados em) realidades muito distintas das brasileiras. 

 

Frente a isso dá para entender a importância de o projeto do compromisso social pretender fazer um enfrentamento com o pensamento colonizado. Esse enfrentamento foi proposto para acontecer por meio do estabelecimento de pontes entre o trabalho realizado nas nossas universidades e o trabalho realizado por profissionais que estavam em campo, inventando novas práticas todos os dias. 


Não que esse projeto de juntar os mundos tenha sido inventado pelo projeto do compromisso social. Desde a década de oitenta, o CFP sob a presidência de Yone Khouri e com a participação de Marcus Vinícius vinha tomando iniciativas nessa direção. Já em 1989 reunimos Conselhos e Sindicatos para tentar um trabalho articulado. No processo constituinte realizado pela autarquia em meados dos anos noventa do século passado, já foi apontada a necessidade de estabelecer espaços de articulação entre as entidades nacionais da Psicologia.


Na virada do século houve um processo de amplificação dessa perspectiva, por exemplo, ao buscar estabelecer pontes entre o mundo da prática profissional e o mundo da construção acadêmica. Na prática, essas iniciativas corresponderam a uma perspectiva de contínua busca de confluência de esforços.


Ao mesmo tempo, essa confluência de esforços significou um exercício de combate ao pensamento colonizado nas duas pontas dessa ponte. Do lado da prática profissional, pela criação de vias de acesso à produção dos profissionais da pesquisa no Brasil. Do lado da produção acadêmica, pela oferta de objetos e problemas de pesquisa vitalizadores de um pensamento autenticamente comprometido com a realidade brasileira.


Vale a pena referir três tipos de iniciativas que apontam nessa direção da confluência de esforços articulados ao combate ao pensamento colonizado: a realização dos Congressos Norte Nordeste de Psicologia, a invenção dos Congressos Brasileiros de Psicologia Ciência e Profissão e a formulação e construção da Biblioteca Virtual da Psicologia.


Os congressos Norte Nordeste de Psicologia foram organizados pela autarquia e tiveram um foco muito especial, o de mover o eixo tradicional da realização de eventos importantes de Psicologia, que sempre aconteciam no eixo Rio-São Paulo. A adesão da comunidade foi completa. Professores, pesquisadores, profissionais e estudantes acorreram aos congressos que passaram a ser realizados naquele momento em capitais nordestinas e, um deles, em Belém.


Sua realização e impacto significaram que se você queria que seu trabalho fosse conhecido, valia muito a pena ir aos congressos no Nordeste . E a adesão e presença  de público foi aos milhares, considerando profissionais, professores e estudantes.

Já os Congressões foram convocados e organizados pelo FENPB, ainda que contassem com o completo apoio financeiro e estrutural da autarquia CFP. Eles são exemplo importante da amplificação da perspectiva de criação de pontes entre a profissão e a academia: sua realização reuniu praticamente todas as entidades de Psicologia do país, reunidas no FENPB. No primeiro Congressão, em 2002, a Associação Nacional Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia (ANPEPP) redefiniu a data de sua reunião anual para facilitar a participação de seus pesquisadores no evento.


A lógica de construção do programa denotou esse esforço de confluência de esforços: havia um eixo perpendicular que reuniu um conjunto de atividades debatidas e definidas coletivamente pelas entidades e um eixo perpendicular que consistiu em um conjunto de atividades a serem promovidas por cada uma das entidades.


À época foi definido para o Congressão que sua “finalidade é que a Psicologia no Brasil tenha uma ciência alimentada pelas indagações que nascem da prática da profissão, ao mesmo tempo em que os psicólogos tenham um amplo acesso aos conhecimentos científicos”.


A reunião, naquele momento, de quinze entidades nacionais (nove que já compunham o FENPB e outras seis que vieram colaborar e que ingressaram no Fórum nesse momento) resultou em que a cada hora do congressão acontecesse uma quantidade de atividades correspondente a um congresso inteiro de Psicologia, nos moldes do século passado.

Foi assim que, passados quase cinquenta anos da tentativa anterior de criar um congresso brasileiro de Psicologia, aconteceu o primeiro Congressão,  no ano dois mil e dois. Foi o primeiro acontecimento em décadas e desde o nascimento da profissão, que poderia receber esse epíteto: DA Psicologia. Isso porque reunia quase todas as linhas de força conhecidas na ciência e na profissão. 


Em seu programa, os Congressões abriram espaço para produção e apresentação de arte. Um exemplo impactante, que se tornou rapidamente uma tradição desses eventos, consistiu na realização de uma escultura humana com mais de três mil pessoas e apresentação de obras nas edições seguintes.


Na mesma direção de combate ao pensamento colonizado, outra iniciativa importante foi a construção da Biblioteca Virtual. Na junção das perspectivas de construção de uma comunidade ampla da Psicologia nacional e estabelecimento de condições para aprimoramento profissional, foram criadas, primeiramente,  bases de dados de referenciação bibliográfica. Foi algo inacreditável para a nossa área.


A base de dados que reuniu os resumos de periódicos superou todas as expectativas. À época, todas as indicações eram para começarmos a fazer os registros no ano 1998 e seguir adiante. Mas nós resgatamos todos os artigos publicados em Psicologia no Brasil. Isso é que foi inacreditável, porque reunimos desde o primeiro periódico publicado no país, no final da década de cinquenta.


Nossa nova base era mais abrangente do que quaisquer equivalentes de fora do país, já que ela não fazia exigências (como regularidade e continuidade) que somente costumam ser atendidas por periódicos de países abonados.


Com a Biblioteca acabamos com uma tradição: a de começar teses e dissertações com a frase “ninguém estudou isso no Brasil” e ampliamos em muito as fontes de referências para os pesquisadores e acadêmicos brasileiros, além de estrangeiros interessados na nossa produção. Ocorre que, com milhares de artigos catalogados, ficou virtualmente impossível achar um assunto que ninguém tenha referido em nossa história.


Isso se comprovou, mais uma vez, neste mês de outubro quando realizamos a Jornada Psicologia e Fome. Foi possível identificar o único trabalho publicado de pesquisa da nossa área relacionado à fome, o que esperamos sofra uma forte modificação a partir do evento na semana passada.


Para a construção das bases de dados que resultaram na Biblioteca Virtual utilizamos o procedimento que era empregado para todas as nossas iniciativas, chamando quem pudesse colaborar. Publicamos um edital e mandamos para um sem número de instituições perguntando quem se disporia a construir as bases de dados. 


No momento de criar a primeira base de dados que seria o equivalente aos Brazilian Psychological Abstracts, fortemente defendido à época pelo William Gomes, saímos pedindo às pessoas indicações de periódicos que não poderiam ser esquecidos. No primeiro momento a lista variou entre onze e vinte títulos. Na primeira consolidação feita a partir da construção da base de dados, foi  identificada mais de uma centena de periódicos.

Então, com os recursos destinados para a criação das bases de dados pela autarquia, propusemos a criação da Biblioteca Virtual de Psicologia.


Isso só foi possível porque  bibliotecárias da área da Psicologia de todo o país aceitaram colaborar na alimentação das bases criadas. Essas profissionais participavam da Rede de Bibliotecas da Área da Psicologia (REBAP), que chegou a contar com mais de uma centena de instituições.

 

Já havia condições para criar a Biblioteca Virtual porque estavam já estavam sendo criadas bases sobre livros de Psicologia, de dissertações e teses, de trabalhos de conclusão de curso de graduação, de monografias de especialização… Tudo graças ao empenho das profissionais da REBAP.


Tanto a criação das primeiras bases de dados, quanto a instauração da Biblioteca Virtual foram possíveis graças ao apoio sine qua non de duas bibliotecárias que se empenharam de forma persistente a elas. A Rosa Maria Vivona (da PUCCAMP) e Maria Imaculada Cardoso Sampaio (da USP) não dependeram do impulso de qualquer autoridade da área da Psicologia de suas instituições para tomar esses projetos nas mãos. Rosa dirigiu a construção das primeiras bases de dados e Imaculada coordenou a criação da REBAP e toda a implantação da Biblioteca, até a criação e implementação do PEPSIC, hoje muito valorizado na comunidade acadêmica. 


Um detalhe técnico de caráter político de enorme importância consistiu no estabelecimento do vocabulário controlado para a construção da Biblioteca Virtual. Na maioria dos países, esse vocabulário consistia na tradução do Thesaurus estadunidense. Para a nossa Biblioteca Virtual foi estabelecido um thesaurus muito mais amplo, já que foi criado quase um terço a mais de descritores para abarcar a produção brasileira.


Foi nesse empuxo que a nossa Biblioteca Virtual chegou a ser muito grande e potente.

No momento atual, ela sofre com falta de atualização, mas a Diretoria do CFP está empenhada em fazer o resgate desse instrumento importante para a formação, inclusive para quem está longe dos grandes centros. Quando formos discutir o enfrentamento do colonialismo cultural, vamos poder aprofundar outras dimensões deste patrimônio que foi e é a Biblioteca Virtual.


De fato, a pandemia teria sido outra para a Psicologia, se a nossa BVS estivesse em melhor condição de funcionamento.


Um comentário:

  1. Democratizar a literatura da Psicologia é uma temática super necessária nestes tempos de dores profundas. Parabéns aos envolvidos!

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