domingo, 17 de outubro de 2021

A organização da Psicologia para o diálogo com a sociedade brasileira, por Ana Bock, Marcos Ferreira e Elisa Zaneratto Rosa



A Psicologia cresceu no Brasil sem que houvesse um correspondente desenvolvimento de instituições que pudessem representá-la de forma efetiva. Vivemos muitos anos sem ter visibilidade sobre a origem de decisões que afetavam de modo impactante a profissão. Exemplos disso são o modo de formação profissional escolhido, a restrição da atenção de profissionais a somente três áreas (organizacional, educação e clínica), assim como as razões por que verbas de pesquisa eram dirigidas a este ou aquele setor. 

A história das relações Psicologia no Brasil foram marcadas ao longo de décadas pela dispersão, pelos coletivos que se tratavam (cada um deles) como se a Psicologia fosse sua propriedade. 


Grande parte de nossos problemas eram importados do exterior. Por exemplo, as lutas entre correntes de pensamento psicológico. Quando dois expoentes de abordagens diferentes apareciam em um vídeo conversando amigavelmente, a reação aqui era de completa incompreensão, como se aquilo fosse impossível.

A falta de legitimidade era a marca para qualquer ator que pretendesse falar em nome da profissão. As decisões mais importantes aconteciam sem a participação do conjunto da comunidade da Psicologia, muitas vezes por imposição de alguns, outras vezes por descuido da maioria dos atores.


Foi nesse contexto que o projeto do compromisso social fundou a sua ação no campo institucional, na busca da constituição de uma comunidade nacional da Psicologia capaz de incorporar as diferenças e, ao mesmo tempo, oferecer caminhos legítimos para a definição do futuro da profissão, da ciência e da formação. Para isso era preciso reunir e organizar a psicologia brasileira.


Andávamos dispersos, sem espaços de colaboração e quase sempre com problemas de relacionamento entre os atores mais conhecidos. Então a proposta do Projeto do Compromisso Social apontava para a necessidade de estabelecer canais para que atores legítimos pudessem “tomar a psicologia nas mãos”.


Nesse sentido vale a pena apontar três acontecimentos da virada do século que foram impactantes e ainda hoje produzem efeitos. São eles o surgimento do Movimento Prá Cuidar da Profissão, o modo de funcionamento da Assembleia de Política, Administração e Finanças e a criação do Fórum de Entidades Nacionais da Psicologia.


O Movimento Prá Cuidar da Profissão surgiu a partir de uma chapa que concorreu às eleições para o CFP em 1996. Tratava-se de uma novidade na Psicologia. Foi a primeira vez que um coletivo se reuniu em torno de um ideário para propor ações de longo prazo para a profissão. 


Até então, as iniciativas eram centradas em personalidades de referência na Ciência ou na Profissão, ou acordos entre alguns profissionais. Normalmente, os projetos eram de curta duração, com exceção daqueles em que a personalidade de referência conseguia sustentar em suas atividades profissionais e políticas alguma iniciativa. E mais, quase sempre esses projetos eram focados em algum aspecto da profissão ou da produção científica: num momento a formação profissional, em outro a destinação de verbas para pesquisa ou a atenção a algum problema social específico.


Já o Movimento Cuidar da Profissão desenvolvia, ou buscava desenvolver, propostas para todos os temas que pareciam importantes em cada momento da conjuntura visando progresso social, além de métodos explícitos para sua realização, sempre baseados no rigor ético e exigente da gestão de recursos entregues à autarquia pelas profissionais de todo o país. Para isso, o Movimento se organizou em diferentes estados brasileiros, promovendo debates e estabelecendo mecanismos de participação visando a radicalidade democrática tanto no seu funcionamento quanto nas propostas a serem levadas para as entidades da Psicologia.


É importante registrar que essa iniciativa de reunir atores legítimos não foi algo inventado pelo Projeto. Já na gestão da Yvonne Khoury como presidente do CFP, por exemplo, houve uma busca forte de aproximar os mundos dos conselhos e dos sindicatos. Também no processo constituinte em meados dos anos noventa, logo, anos antes do estabelecimento do Projeto do Compromisso Social, foi estabelecida a proposta de criar um espaço de interlocução de entidades nacionais da Psicologia, assim como um espaço interno aos Conselhos para diaĺogo entre as unidades da autarquia. 


O modo como o projeto do Compromisso Social interpretou essas iniciativas e deu sequência a elas é que tem um tom muito especial que vamos apontar aqui. O caso da APAF, que naquele momento tinha o nome por extenso Assembleia de Políticas Administrativas e Financeiras, é excelente exemplo. A APAF consiste numa instância que reúne representações de todas as unidades da Autarquia, todos os conselhos regionais e o Conselho Federal, cujo projeto era mais voltado ao acompanhamento de ações administrativas e gestão financeira.


A forma que ela tomou no momento da sua instalação é muito mais participativa e decisória do que estava previsto no processo constituinte que definiu a sua criação. A partir do momento em que a nova concepção foi colocada em marcha, tudo na autarquia  passou a ser objeto de deliberação pela APAF. Isso foi tão forte que resultou em mudança no seu nome, que passou a ser Assembleia de Política, Administração e Finanças. Essa instância, que reúne o Conselho Federal e todos os Conselhos Regionais, define todos os procedimentos internos e as finanças da autarquia. Até mesmo os textos das resoluções e campanhas promovidas pela autarquia passaram a ser definidas pela APAF.


Ocorre que, quando a chapa que viria se transformar no movimento Cuidar da Profissão (que tinha a Ana Bock na presidência) ganhou a eleição pela primeira vez, a sua posição era fortemente minoritária no conjunto da autarquia. Uma forma que a oposição encontrou para colocar freios à nova gestão foi exatamente a de incrementar o poder da APAF, que tinha quase noventa por cento composta por atores de oposição.


Naquele momento ocorreu uma surpresa, que nem mesmo a oposição entendeu o que estava acontecendo. A direção do Federal apoiou que a APAF “dominasse” as suas ações e, por vezes, foram feitas propostas para aumentar essa prevalência, levando para essa instância decisões que eram da alçada exclusiva do plenário do Federal. Isto porque no projeto do Compromisso Social a perspectiva sempre foi a de compartilhar ao máximo o poder de decisão e incluir um máximo de atores legítimos dos processos decisórios.

 

Algo parecido aconteceu na criação do FENPB, que é o Fórum de Entidades Nacionais da Psicologia Brasileira, já no primeiro ano de implantação do projeto do Compromisso Social, em 1997. Uma das primeiras ações depois que tomamos posse em janeiro de 1997, foi implementar uma decisão do Congresso Constituinte de procurar entidades nacionais da Psicologia e propor o estabelecimento de um espaço de articulação.

 

O FENPB foi criado reunindo cinco entidades nacionais, que consistiam na representação dos conselhos, dos sindicatos, dos estudantes, de pesquisadores e da área científica. E mais importante, ficou combinado que o FENPB trataria de tudo que dissesse respeito à Psicologia no país e só o FENPB daria a palavra final para as decisões que dissessem respeito à profissão e à ciência.


O cartaz que anunciou publicamente a criação do FENPB parecia um édito real e nele, por unanimidade das entidades participantes, foi afirmado que não haveria mais espaço para a representação ilegítima da comunidade da Psicologia. 


Com sua criação o FENPB já resolveu um dos principais problemas que a Psicologia enfrentava: as disputas entre as poucas entidades organizadas. Ocorre que cada entidade queria ser a APA brasileira. APA é a American Psychological Association, entidade estadunidense que toma a seu encargo a quase totalidade dos temas relativos à Psicologia naquele país. A imagem jocosa que fazíamos é de que cada uma enxergava a outra organização como nos desenhos animados um personagem enxerga o outro num espeto de churrasqueira. Com o advento do FENPB esse tipo de disputa ficou praticamente eliminado, talvez com uma única exceção.


Isso permitiu enorme fluidez nos processos decisórios sobre a Psicologia. A criação da Biblioteca Virtual é um bom exemplo. Decisões que em outras profissões levavam um ano para serem tomadas, alguma vez levaram uma semana para serem tomadas pela Psicologia. A Biblioteca, que tinha previsão de dois anos e meio para ser criada pela BIREME, foi lançada em cinco meses.


E o FENPB logo cresceu e ganhou representação ainda maior na Psicologia. Essa decisão de ampliação do acesso de entidades nacionais ao Fórum corresponde também a uma política estabelecida no projeto do Compromisso Social: apoiar ao máximo as demais entidades da Psicologia. Por exemplo, o Conselho Federal, que tinha e tem o segundo maior orçamento da Psicologia no Brasil, conta com a mais forte estrutura organizacional e tem a maior visibilidade dentro da profissão e decidiu que utilizaria essa potência para impulsionar projetos coletivos, sempre que possível e de acordo com as disposições legais.

Essa ênfase no apoio a outras organizações era tão forte que, quando acontecia a decisão por uma determinada iniciativa, a primeira pergunta da nossa diretoria era: com quem vamos realizar esse projeto? Os atores da Psicologia eram convidados, independentemente de manterem relações pessoais ou políticas com o coletivo que estava no Federal.


A partir da criação do FENPB ficou fácil também identificar lacunas nas facetas da institucionalização da Psicologia no Brasil. Uma lacuna que foi logo percebida se refere ao tema da Formação em psicologia. 


Na nossa história havia quase que uma mania de tentar resolver qualquer problema por meio da realização de alguma alteração no currículo das faculdades. Os Conselhos mantinham grupos de trabalho ou comissões dedicadas ao tema da formação que acontecia nos nossos cursos de graduação. Aliás, acontecia uma disputa entre diferentes organizações sobre quem deveria cuidar do assunto. E o pior, no momento em que uma entidade crescia nesse assunto, acontecia alguma mudança na sua diretoria e o assunto voltava a ficar descuidado. Acima de tudo, como é sabido, quando todo mundo cuida de alguma coisa, ninguém cuida de verdade.


Daí, criamos a Associação Brasileira de Ensino de Psicologia (ABEP), isto é, o Fórum de Entidades Nacional da Psicologia Brasileira criou a ABEP. Ela foi pensada como a entidade com mais extensa base potencial dentro da Psicologia. Seu projeto era reunir professores, estudantes, coordenadores de curso, profissionais da Psicologia e profissionais de outras profissões. 


Ao invés de continuar a disputar por dominar esse tema, quase toda a comunidade da Psicologia apostou em fazer da ABEP sua representante para tratar da formação. Já no momento da sua criação, a ABEP capitaneou o debate para a definição das diretrizes curriculares, que teve enorme envolvimento de muitos atores legítimos da Psicologia.

A ABEP não foi o único caso de iniciativas na direção do fortalecimento institucional da nossa profissão. Outras lacunas foram percebidas e receberam o mesmo tipo de apoio, como no caso da criação da ANPSINEP - Articulação Nacional de Psicólogas(os) Negras(os) e Pesquisadoras(es) e da ABRAP - Associação Brasileira de Psicoterapia, entidade que compartilhamos com profissionais médicos.


O tema da Psicoterapia é muito sensível para a nossa profissão. A proposta que levou à criação da ABRAP apontava para o estabelecimento de um procedimento com definições nítidas do que deveria ser exigido para que um profissional pudesse ser reconhecido como psicoterapeuta. Esse procedimento não chegou a ser implementado, mas passamos a contar com uma importante organização na área.


Mas, o apoio ao aprimoramento institucional da Psicologia era só uma das facetas do FENPB. As mais importantes consistiam nas respostas que ele produzia para os problemas vividos pela profissão e pela ciência. 


Foi estabelecido um método que foi logo cristalizado no FENPB naqueles anos: qualquer entidade poderia identificar ou receber indicação de algum problema da Psicologia, trazer para o debate coletivo e o Fórum cuidaria de encontrar a forma de responder a esse problema. Um exemplo importante consiste numa situação enfrentada pelas entidades científicas: logo que se estabeleceu a necessidade de cuidados mais explícitos com a ética na pesquisa, esse tema foi trazido ao FENPB e, depois de debatido e assumido coletivamente, ficou estabelecido que o CFP editaria uma resolução com as normas indicadas pelas entidades científicas. O CFP não tinha relação direta com o mundo da pesquisa, mas era a entidade com o lastro institucional que o assunto necessitava. Claro, aí o CFP teve que fazer todo o trajeto, levar o tema para as instâncias da autarquia e assim por diante, mas ao final publicou uma resolução que serviu de apoio aos encaminhamentos iniciais nos cuidados com a ética na pesquisa.


Outro exemplo se refere ao momento em que o debate sobre redução da maioridade penal ganhou corpo. O FENPB organizou uma campanha para desautorizar o uso do conhecimento psicológico na defesa desse absurdo e para combater diretamente a tese. Outras campanhas importantes foram realizadas, como no combate à aprovação do projeto do ato médico que foi aprovado na Câmara, vetado pela Presidenta Dilma e corria o risco de ter o veto derrubado pelo Congresso Nacional.


Em todos esses casos o sentido da existência do FENPB se materializou: assumir responsabilidade por tudo que tenha que ver com a Psicologia no país e defender a ciência e a profissão articulando e fazendo confluir um máximo de forças presentes na comunidade nacional da Psicologia.





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