quarta-feira, 13 de outubro de 2021

Estamos sob ataque! Inteligência artificial e subjetividades, por Marcos Ferreira, Ana Bock e Graça Gonçalves


Manipulação de subjetividades por meio de aparatos e processos baseados em inteligência artificial. O instituto Silvia Lane assumiu em 2020 que esse assunto era o mais importante do mundo para receber atenção da Psicologia. Com a criação da Rede Matraga, essa perspectiva ganhou força. Mesmo reconhecendo que a pandemia e, agora de forma impactante e inaceitável, a fome sejam assuntos inadiáveis, está claro que a contribuição mais importante de longo prazo que a Psicologia tem a dar seja no tema da relação das subjetividades com as tecnologias;


Até mesmo a forma como a fome e a pandemia são tratadas sofre enorme impacto dos modos de interação que a sociedade estabelece com essas tecnologias. 


De modo semelhante ao da pandemia (e da fome), trata-se de um problema que afeta a todo o planeta, mesmo que de diferentes modos. Há um mundo inteiro sendo construído ao nosso redor, que nos envolve e dirige nossa atenção e nossas ações, e a maior parte dos cidadãos sequer se dá conta disso. Tudo acontece em meio a um processo de naturalização da inserção dessas tecnologias nas nossas vidas. Mas, não é natural que as pessoas gastem tanto tempo nesses aparatos, que eles estejam inseridos de forma tão profunda na nossa intimidade, que eles nos conectem de forma tão intensa

Antes, você tinha um computador e o que você escrevia nele ficava alí. Depois você tinha a chance de se ligar a uma rede e mandar seu texto para alguém, porque tinha um computador central ao qual você se conectava porque agora o seu computador era um “terminal”. Hoje quase qualquer aparato é (ou pode ser) um terminal de computadores centrais que você nem sabe quais são. Enquanto digita um texto, você já pode ser observado. Mesmo sem digitar você já pode ser observado. Só de conversar perto do seu telefone, mesmo “desligado”, corre o risco de você receber uma propaganda sobre o que estava falando. Só de caminhar por uma rua diferente do seu hábito, corre o risco de receber propaganda de imóveis nessa região.


Com o advento dos processos que produzem realidade virtual, tornou-se possível afirmar que a transmissão ao vivo a que este texto se refere poderia ser fake. Seria possível pegar fotos dos quatro participantes e produzir um vídeo dizendo o que quisessem (claro, sempre mantendo um pé na realidade) e dizer o que quisessem em nosso nome.


Isso tudo é que nos fez usar como título do livro a frase que é chave no filme Bacurau: estamos sob ataque! Lá o risco era de desaparecimento de uma cidade por interesses empresariais, aqui o risco consiste num processo de manipulação das subjetividades, com poder de criar cosmovisões, de inventar realidades, de acabar com longas amizades, tornar impossível a convivência familiar. Segundo alguns filósofos, aqui o risco é de invalidação das subjetividades.


Assim como no filme Bacurau, a primeira providência é tomar consciência de que existem riscos e que eles são organizados e que eles têm uma finalidade: estamos sob ataque!;  


Acerca de riscos podemos fazer uma banca de apostas sobre qual vai ser o novo modo de enganação que o fascismo vai usar nas próximas eleições. Seria fácil colocar o candidato com chance de derrotar a direita fazendo uma confissão de um crime, ou numa reunião onde pessoas estivessem planejando algo absurdo. Esse tipo de enganação já foi feita no passado, mas agora seria realizado usando a voz e a face das pessoas que se queira incriminar.


O que nos impressiona como profissionais da Psicologia é que, diante de tanta invasão, fica estabelecido um sentimento de abandono e impotência. Não tem jeito, não temos saída, temos que nos entregar. Pode até ser que não haja nada de errado com esse deixar-se levar. Mas, se tem problema ou não é algo que precisa ser debatido, analisado, teorizado. Não basta deixar que as correntes do mercado nos levem, conforme os seus interesses.


É impressionante como tem muita gente enviando sinais de alerta, há muito tempo. Há duas décadas nossos hackers têm avisado que pode haver problemas graves nesse assunto. No mundo inteiro, profissionais da computação, sociólogos, filósofos e alguns poucos psicólogos têm avisado que essa invasão, uso e jogo com as subjetividades pode não ser algo aceitável de forma pacífica. Estão afirmando que estamos ficando menos inteligentes, menos capazes de solidariedade, menos afetivos, menos interessados em sexo, menos habilitados em reconhecer o que é verdade.


Nós é que prestamos pouca atenção. Nós é que tratamos como natural o que não é natural. 


Por constatar que haja poucos psicólogos criticando (ainda que possa haver muitos trabalhando na produção de processos e aparatos) é que ficou importante para nós essa ação de fazer um chamamento, primeiro para a Psicologia e também para a sociedade. 


Construímos um Simpósio que tinha, ao mesmo tempo, um caráter propedêutico, um caráter de formulação de propostas de atuação e ainda uma perspectiva de mobilização para o tema. Tivemos mais de vinte eventos preparatórios ao longo de dois meses, além das oito conferências durante os três dias do simpósio.


Por que eventos preparatórios? Porque desde o primeiro momento reconhecemos que somos pouco informados sobre o mundo digital. Precisávamos aprender. O que não era possível era aceitar que esse despreparo fosse motivo de não focar no tema e continuar a tomar providências prejudiciais tanto a nível pessoal, quanto a nível das organizações onde atuamos. Lançamos de um método que muito apreciamos: lidar com o desconhecido buscando o apoio de experts críticos.


Procuramos quase toda a Psicologia. Mais de cinquenta entidades, entre aquelas de âmbito nacional e regional, foram convidadas a participar desse processo. De fato, contamos com vinte e cinco entidades no grupo de entidades que apoiou o Simpósio. Adotamos uma sistemática de trabalho em rede para sustentar o debate: mais de quinhentas pessoas participaram do processo, além das entidades que se envolveram.


E quando acabou o evento, a rede montada não deixou de existir. Ela se manteve e está se fortalecendo de forma independente do Instituto. Aliás, o Silvia Lane agora é filiado a ela. 


Trata-se da Rede Matraga. A rede é aberta à participação de profissionais de quaisquer áreas, ela conta com um coletivo hacker, profissionais que nada têm a ver com as tecnologias, profissionais que trabalham com isso, estudantes, enfim, esse conjunto de forças que poderá criar uma novidade na comunidade da Psicologia.




 

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