sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

Justiça e jornalismo: um casal vulgar e suicida

As mentirinhas pontuais que são desmentidas no próprio ninho têm a sua função estratégica. É uma função pobre, desonesta, risível, mas é uma função.

Dizer que Lula ganhou um milhão do Khadafi, que ganhou comissão na venda de caças, que é dono de triplex, que é dono de sítio em Atibaia, que seu filho é dono da Friboi, que seu filho foi visto saindo de uma Ferrari dourada em Dubai, tudo isso massageia os neurônios avariados de grande parcela da classe média - essa ode à ignorância - (com todo o respeito à ignorância, que também tem sua função), mas não alcançam legitimidade empírica.

Qual é a função das mentirinhas? É desacreditar toda e qualquer notícia, até as "reais" (minoria absoluta em se tratando de jornalismo brasileiro). Pode parecer estranho, mas o descrédito da imprensa é vital para o prosseguimento do "sistema", da estrutura de crenças e valores que movimentam a narrativa de uma realidade forjada, imposta por grupos, absolutamente essencial para o "mercado", tanto das finanças quanto das ideias.

A notícia que diz que Lula recebeu "quantias ilícitas" tem 40 anos de idade. Ela é uma senhora. Desde 1978, ela aparece toda pimpona e serelepe, como num desfile de carnaval. Só muda a roupa e o perfume (às vezes, nem isso).

Diferentemente do que se pode imaginar, o cidadão incauto não "acredita" propriamente nesse tipo de notícia - que ele já conhece de velho. Ele se diverte com ela. Bravateia, irrita amigos politizados, ganha um eixo temático para umidecer sua aridez intelectual, tornando, assim, palatável sua presença numa rodinha quaquer, seja no boteco da esquina ou na sauna do clube.

A notícia que nasce falsa é um elemento de controle, uma domesticação pavloviana que mantém todos - inclusive os seres politizados - em estado de letargia e salivação permanente, apenas esperando a próxima notícia que irá se encadear a essa e assim por diante.

Ninguém acredita que Lula recebeu um milhão de Khadafi (a não ser os severamente prejudicados intelectualmente que, é claro, existem), sobretudo porque, por mais ingênuo que um cidadão possa ser, ao menos o inconsciente dele sabe que existe algo no mundo chamado"prova". É aí que entra o outro elemento que se encaixou como uma luva nesse jornalismo de qualidade rarefeita praticado aqui no Brasil: a justiça.

A justiça passou a cumprir um papel de dar coerência aos delírios e fantasias do jornalismo. Eles se amam e precisam furiosamente um do outro neste momento. A justiça e o jornalismo são o par romântico central da presente novela em exibição. Traições à parte, eles tendem a casar no final. A cena é insinuante: a justiça grávida, enxugando as lágrimas com a própria venda (que ela arrancou num gesto de delírio e fúria) e a "família jornalismo" toda feliz, representada por atores canastrões em fim de carreira.

O único problema não previsto por esses fraudadores de realidade é que a justiça não é uma profissional do teatro. Eles levaram a sério o que, a rigor, não era para ser levado. Daí a excrescência de coadjuvantes amadores como Dallagnol e seu powerpoint, Moro e suas aparições inacreditáveis para um juiz (ele parece um ator, reparem), procuradores que confundem Hegel com Engels e assim por diante.

Ao tentar dar coerência ao script trash do jornalismo, a justiça se imbecilizou e se desacreditou a si própria seriamente. Ela interferiu demais na estratégia secular do jornalismo em oferecer aquela ração pobre e acochambrada para manter parte da sociedade sob estado letárgico. Duas definições podem dar conta deste fenômeno: um, a fantasia foi além do ponto (e ficou over, mal permitindo novos encadeamentos narrativos de tão absurda). Dois, a justiça foi com muita sede ao pote.

Na ânsia de querer acabar com a corrupção - sic - a 'liga dos procuradores' entrou numa espiral de ridículo e de risível. São motivo de piadas diuturnas em bares, cafés, padarias, postos, esquinas, redes sociais e mídia alternativa.

O ciclo "virtuoso" das notícias intrinsecamente fajutas, portanto, se quebrou e arrastou parte considerável da vida mental do pobre leitor de Folha e Estadão. Este passou a formular, ele também, as teses esdrúxulas do jornalismo rastaquera que ele consumia por esporte. As piadas irônicas da esquerda viraram teses da direita: quem não viu um juiz falar em "minoria heterossexual", ou um Kim Kataguiri da vida dizer que o PSDB é comunista?

É desse furdúncio que brota uma perspectiva para o futuro. Traduzindo: não há ninguém com o controle da situação. E quando ninguém controla a situação, a tendência é que a coletividade prevaleça. Evidentemente, não sem violência, arbítrio e sangue. Mas, isso faz parte da história, por mais beicinho pacifista e contemporizador que influenciadores seniores educados possam fazer. Ninguém aqui acha que a sociedade é boazinha e solidária per si.

Durma-se, no entanto, com uma conjuntura ideológica dessas: jornalismo e justiça como um casal fruto da promiscuidade, e fantasia e fato (convicções e provas) como a prole edípica que protagonizará o desfecho final: a primeira, como a filha bastarda vingativa e o segundo, como o Hamlet traído e irresistível. Dá uma ópera.


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