Profissão ingrata a de jornalista. Ao ver Pedro Bassan comemorando o pagamento de 10 bilhões de reais pela Petrobrás no acordo feito com a justiça americana como se fosse uma vitória do Felipe Massa, ou Délis Ortiz com sua dicção técnica dizendo de maneira assertiva que Roberto Jefferson se emocionou com a nomeação de sua filha para o ministério do trabalho, o meu sentimento foi de ‘expectoração’. Sim, eu tossi.
Triste conjuntura sociológica de um país que produziu um profissional absolutamente singular. O jornalista brasileiro é um produto intelectual acabado da nossa herança escravagista. Ele serve e protege o seu senhorio com fidelidade canina e dedicação maternal. Os fatos, para ele, são mero detalhe. O que importa é se seu 'trabalho' agrada ou não.
Essa auto identificação complexa, consentida, preservacionista e certamente contraditória pode ser observada em várias facetas da prática jornalística tupiniquim.
A primeira percepção é a de que o jornalista corporativo brasileiro, locado em uma grande redação, acha que é, ele mesmo, o próprio patrão, que tem toda a liberdade para escrever, fotografar e apresentar sua leitura técnica dos fatos.
São altivos e apaixonados pelo que fazem. Trabalham até as 3h da manhã e reclamam com imenso orgulho. Fazem troça da própria exploração explícita a que são submetidos, tudo isso num misto de charme e abnegação.
Toda essa sofrência consentida subscrita na profissão, recheada de cifras vocacionais e paixão genuína, parece emergir diretamente da auto identificação dos jornalistas trabalhadores. Eles parecem proprietários desse discurso que lhes confere caráter profissional seguido de juramento conceitual.
Só que não. Até essa ideia, quem vende são os patrões, os editores, os publishers, aqueles que detém, de fato, o poder de veto sobre a notícia. É uma situação extrema: o jornalista brasileiro foi tão domesticado que até sua percepção de si não é sua, é de seu chefe.
E eles gostam dessa percepção, é claro. Ela é edificante. "Sou dono do meu nariz, escrevo o que eu quero, tenho liberdade, sou investigativo", eles dizem. Minto e reitero. Eles não dizem isso. O patrão é que diz por eles. O patrão os defende.
Jornalistas são bem comportados demais para defenderem per si o conceito da profissão. Jornalista que começa a se defender, aqui no Brasil, é perigoso para o establishment. O sindicato pelego ali, na inércia conhecida e assentida, já está de bom tamanho. "Tenho mais que fazer", diria um repórter atarefado, com o prazo estourando.
Isso posto, temos algumas situações comparativas. Há, por exemplo, uma diferença abissal de um Glenn Greenwald, de uma BBC, de uma Al Jazeera para o que se produz nas redações institucionalizadas aqui no Brasil.
Ali, se investiga, se prospecta, se constrói dicções. O profissional de redação, nestes nichos, não está a serviço de um pensamento único. Ele sabe como deve proceder com a informação e, mesmo que erre ou pese a mão, ele lida com outro tipo de pressão.
Um jornalista fora do sistema Globo-Folha-Estadão, talvez o sistema de informação mais fechado e monotemático do mundo (uma verdadeira Coreia do Norte da informação) - lida com as pressões clássicas do cenário jornalístico internacional: política, economia, soberania, mercado, conjuntura, tudo em seus diversos matizes.
Ele não lida com uma fobia única, portanto, lida com várias. Isso o faz diferir substancialmente dos nossos gloriosos jornalistas. Estes últimos foram criados em um ambiente de discurso único, pobre, monopolista, concentrador. Eles não tinham como ser "bons" profissionais, no conceito da profissão e na acepção corrente do termo.
Praticam seu ofício, no entanto, com comovente competência subserviente. Redigem textos com ritmo, constroem tons de credibilidade, sabem agradar o chefe e a banca, sabem ascender na carreira, sabem abdicar de toda e qualquer cifra de "opinião" pessoal - como rezam os manuais de redação -, enfim, sabem se comportar.
É uma mentalidade completamente diferente de um jornalista americano, por exemplo, que parece nascer com algum sangue investigativo e com a missão 'protestante' de enfrentar o chefe - salvo as exceções de praxe, aqui e acolá. Lá, enfrentar o chefe é conquistar respeito. Aqui, a fé católica talvez deixe isso para depois da morte.
O que ordena os gestos e as ações deste segmento aqui no Brasil é a comida na mesa, do feijão ao caviar. É a tese de Jessé Souza: o que nos define não é o patrimonialismo - quem dera. O que nos define é o escravagismo.
Vou além: o que nos define é o escravagismo dócil, aquele em que o escravo ama e defende o senhor, famosa síndrome de Estocolmo à brasileira tão bem descrita por Tarantino e tão bem interpretada por Samuel L. Jackson em Django Livre.
Levar uma vida inteira sem saber o que significa de fato liberdade de expressão, eis um trauma digno do nome. O brasileiro, jornalista ou não, nem suspeita do que seja o "american way of life" (o que não é nenhuma Brastemp filosófica mas já ajuda a se conceder um mínimo de autoestima). Parece não ter o direito a saber e se lhe derem esse direito, ele recusa educadamente: "não, obrigado".
Isso explica tanta docilidade em tantos segmentos. Aqui, greve é crime, manifestação é vandalismo, desafio intelectual é ofensa, divergência é falta de educação e promessa é desconversa.
Aos jornalistas que vierem a ler este artigo, advirto: sou admirador de vocês. Este é o ponto que me leva a redigir tal pensata. Daqui do chão acadêmico dos estudos linguísticos, posso assegurar que o desejo é de libertação, de soberania, para que, acima de tudo, se ponha em prática todo o poder que significa o gesto da escrita jornalística e da narrativa de costumes e fatos que depois virarão história.
Momentos como esse, de profunda crise institucional, tecnológica e política, são favoráveis a tomadas de atitude. Como espectador, eu torço por isso.
É a segunda matéria que leio do Gustavo Conde. Explica com muita clareza a situação do jornalista brasileiro. Não sei se é de alguma valia, mais declaro que sou sua seguidora ou perseguidora de hoje para frente. Obrigada pelas matérias de altíssimo nível.
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